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Na Albânia, mulheres 'viram' homens

Conhecidas como 'burrneshas', elas incorporam vestuário e trejeitos masculinos devido a costume que vem do século 19

Em vias de extinção, estratégia era usada para manter a honra ou garantir sucessão em famílias sem filhos

LUCAS NEVES COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NA ALBÂNIA

No calçadão de Durrës, cidade na costa adriática da Albânia a 40 km da capital, Tirana, um pescador interpela o colega Lali Rakipi, 60, sobre o resultado de sua saída ao mar, horas antes.

Não tarda para que uma mulher de meia idade aborde Diana Rakipi, 60, para jogar conversa fora.

Calça jeans rasgada, tênis e boina pretos, casaco e colete largos sobre abrigo e camisa social masculinos, Diana e Lali são um(a) só.

Trata-se, respectivamente, dos nomes de batismo e de adoção de uma "burrnesha" (forte como um homem, em tradução livre do albanês).

São mulheres que, geralmente no fim da adolescência, fazem um juramento de castidade e abandonam vestuário, corte de cabelo e trejeitos femininos para assumir o papel social de homens.

A prática, cujos primeiros registros datam do século 19, não prevê intervenção cirúrgica e tampouco costuma decorrer de questões ligadas à identidade ou orientação sexual.

O que se viu por décadas em regiões isoladas do norte da Albânia e também pontualmente em Montenegro, Kosovo e Macedônia foi, isso sim, uma mudança de gênero motivada pela preservação da honra da família, custe o que custar.

Assim, uma jovem sem ganas de se casar com o homem para quem havia sido prometida tinha como "saída" a conversão à persona masculina.

Seria a única maneira de resguardar a reputação dos parentes do noivo preterido, sem o que se instauraria uma "rixa de sangue" entre os clãs, com baixas sucessivas de lado a lado a perder de vista.

Da mesma forma, em lares sem herdeiros masculinos, uma das filhas era educada para suceder o pai no comando da unidade produtiva (no meio rural) ou do pequeno negócio (no cenário urbano) --o patriarcado fixava regras claras quanto à transmissão de bens materiais: de pai para filho, exclusivamente.

Como até a década de 1920 cerca de 30% da população masculina adulta do país perecia em "rixas de sangue" semelhantes à descrita pelo escritor albanês Ismail Kadaré no romance "Abril Despedaçado", o "deficit" de candidatos a chefe do lar teria sido o principal catalisador da existência das burrneshas.

Uma vez reconhecidas como homens, elas conquistavam direitos negados às mulheres nos enclaves mais tradicionalistas dos Bálcãs, como os de ir e vir, fumar, beber, usar relógio de pulso, votar, dizer palavrões, portar armas de fogo e, como já dito, possuir propriedades.

Ao sexo feminino cabia responder pelas tarefas domésticas, criação dos filhos, manutenção do estoque de água e lenha e, nas zonas rurais, pela produção de laticínios e lã.

A cartilha de privilégios e deveres era determinada pelo Kanun, um código moral do século 15 que versa sobre temas tão diversos quanto o casamento, o trabalho, as relações familiares, a propriedade, a honra e a hospitalidade.

Até há pouco, ditames na linha de "a mulher é como uma sacola feita para resistir enquanto viver na casa do marido" (artigo 29) tinham peso de lei na região.

Durante o seu governo (1944-1985), o ditador comunista Enver Hohxa (1908-1985) buscou esvaziar o código.

No entanto, ao restringir a circulação da população e as visitas de estrangeiros, ele agiu contra a própria causa e facilitou a sobrevida das normas arcaicas.

NOVOS TEMPOS

Com a abertura das fronteiras após a queda do comunismo (1991), os usos e costumes foram arejados.

Atualmente, acredita-se que restem cerca de 30 burrneshas no centro-norte da Albânia, a maioria delas idosas.

"Essa tradição caducou", comemora a jornalista albanesa radicada nos EUA Elvira Dones, diretora de documentário sobre o assunto.

Segundo ela, "a partir do momento em que a TV a cabo e o celular chegam às montanhas e em que as pessoas começam a migrar e emigrar, a prática tende a acabar".

Também contribuem para o desgaste a abertura do mercado de trabalho à mulher e o estímulo para que ambos os sexos desempenhem a função de provedores.

As mulheres albanesas, abordadas pela reportagem com a ajuda de uma intérprete, demonstram surpresa, até eventual incômodo, diante do interesse de um jornalista estrangeiro pelas burrneshas.

"Os albaneses começaram nos últimos anos a se questionar sobre um possível caráter de atração de circo' dessas mulheres. E se melindram com a atenção dada a um arcaísmo em vias de desaparecimento", analisa Dones.

O tom crítico sobressai entre as mais novas. "Não faz sentido", diz a professora de inglês Hhile Skura, 44, moradora de Burrel (a cerca de 1h30 da capital). "Vivemos numa sociedade aberta. Se ainda não é completamente livre em certas áreas rurais, a mulher pode ir para Tirana."


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