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História por acaso
Autor de imagem símbolo do massacre da praça da Paz Celestial, na China, relembra como quase perdeu a foto; evento faz 25 anos hoje
Poucos eventos históricos ficaram tão associados a um momento único como o massacre da praça da Paz Celestial, em Pequim, que completa 25 anos nesta quarta (4).
A imagem do homem solitário desafiando uma fileira de tanques tornou-se o símbolo do movimento pró-democracia, que ocupou a praça por sete semanas até ser esmagado pelo Exército.
O americano Jeff Widener, 57, autor da famosa foto, estava longe das condições ideais quando registrou a cena --gripado e ferido por uma pedrada que o atingira no rosto um dia antes. Para piorar, ainda ficou sem filme.
Com a ajuda de um estudante de seu país, entrou escondido no Hotel Beijing, que fica a 800 metros da praça. Com o filme cedido por um turista, fez a imagem, de uma sacada no sexto andar.
Mas Widener esqueceu de adaptar a velocidade da câmera ao filme e até hoje não entende como conseguiu fazer a foto: "Foi um milagre", disse à Folha por email.
O episódio ocorreu em 5 de junho, um dia após o Exército desocupar a praça e terminar os protestos estudantis com uma ação sangrenta.
Widener relembra a atmosfera aterradora em Pequim naquele dia, com tanques e ônibus incendiados por toda a parte. O número de vítimas jamais foi revelado --as estimativas variam de centenas a milhares de mortos.
Atordoado pela pedrada e pela gripe, Widener demorou dias para perceber a importância da foto. Na época, ele trabalhava na agência Associated Press, e a imagem correu o mundo, tornando-se uma das mais conhecidas e marcantes do século 20.
Espantosamente, muitos na China jamais viram a foto, enterrada pela censura num esforço do governo chinês para apagar os protestos.
Refletindo sobre o paradoxo, Widener acha que em muitos casos a amnésia é voluntária. "Muitos chineses usam softwares para driblar a censura, conhecem a foto e sabem da repressão do governo em 1989. Mas, como a situação econômica na China melhorou, estão dispostos a fazer vista grossa", afirma.
Até hoje a identidade do protagonista da foto é um mistério. Especula-se que ele tenha sido preso e executado. Outra versão é que ele jamais apareceu simplesmente porque não soube que seu ato ficou famoso.
Filmes da cena mostram o "homem-tanque" escalando o primeiro veículo da fileira e dizendo alguma coisa aos soldados que estavam dentro. Em seguida, ele é retirado do local por pessoas não identificadas. Widener perdeu esse momento.
"Eu estava ocupado tentando entender se tinha estragado a foto e não vi nem soube nada sobre ele", diz.
"É incrível que após um quarto de século ninguém, nem a família, amigos ou autoridades, esclareça que fim ele levou. Outra questão é o que aconteceu com os soldados do tanque. Eles também desapareceram."
Pouco após o massacre, quando a foto ainda não havia sido proibida no país, as autoridades chinesas ainda tentaram usá-la a seu favor, como um exemplo de como o Exército foi contido.
Num livro publicado na época sob o título "A Verdade Sobre os Tumultos em Pequim", o governo negava que tivesse havido um massacre e culpava "um pequeno grupo de carreiristas" instigado pela mídia estrangeira.
"A verdade sobre os fatos acabará ficando clara para o público", dizia o livro. Mas a publicação logo seria retirada de circulação, e o governo impôs o silêncio sobre o assunto que vigora até hoje.
A imagem do rebelde solitário enfrentando os tanques virou um ícone libertário, inspirando movimentos pró-democracia ao redor do mundo.
Mas até que ponto a narrativa de um protesto pacífico esmagado por uma ditadura brutal, como o episódio é retratado fora da China, corresponde com precisão ao que ocorreu 25 anos atrás?
"Esse é o tipo de pergunta que pode meter um jornalista em encrenca, mas eu digo que houve erros dos dois lados e cada um tinha suas razões", diz Widener. "Só a história irá esclarecer o que realmente aconteceu".