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Minha História Felipe Gatica, 37

Filho da democracia

Argentino sequestrado pelos militares quando bebê compara seu caso ao de Guido Carlotto, neto da líder das Avós da Praça de Maio

(FELIPE GUTIERREZ) DE BUENOS AIRES

RESUMO - Até hoje, as Avós da Praça de Maio encontraram 114 pessoas que, quando crianças, foram roubadas de suas famílias e entregues a outras pelos militares durante a ditadura (1976-83). Felipe Martín Gatica Caracoche, 37, é um deles. Ele desapareceu em abril de 1977, foi localizado em agosto de 1984 e restituído em setembro daquele ano. Hoje, a família inteira vive no Brasil. Felipe mora em Fortaleza.

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Quando o Guido Carlotto foi restituído, fiquei umas quatro horas só pensando no que ele, um homem de 36 anos, estava sentindo. Eu era uma criança quando isso ocorreu, é muito diferente.

Meus pais eram militantes peronistas, vinculados aos Montoneros [grupo guerrilheiro de oposição].

Em fevereiro de 1976, minha irmã nasceu. Meu pai foi preso em junho daquele ano. Poucos meses depois, em dezembro, eu nasci.

Em 1977, minha mãe fugiu para La Plata. Um dia eu fiquei doente, ela me levou ao hospital e deixou minha irmã na casa dos vizinhos, um casal de companheiros, a família Abdala. Quando estávamos fora, os militares chegaram e levaram todos, minha irmã inclusive. Os Abdala estão desaparecidos até hoje.

Na clandestinidade, minha mãe foi morar com companheiros, mas, uma vez mais, chegaram as forças repressoras. Eu tinha meses e fui jogado no quintal do vizinho, como se joga qualquer coisa.

Minha mãe foi para um centro de detenção clandestino onde foi torturada durante três meses. Por um milagre, foi liberada. Meu pai, que havia sido preso no ano anterior, também foi liberado.

Eles conseguiram se reencontrar e começaram a seguir as pistas para achar os dois filhos. Isso aconteceu durante a ditadura. Nem mesmo os militares sabiam ao certo quem estava vivo, quem estava preso. Era uma incógnita.

Um grupo de mulheres que procurava notícias de seus filhos que tinham sido presos começou a se organizar.

Minha tia foi denunciar a esse grupo de mulheres o desaparecimento dos sobrinhos. Foi o primeiro contato da minha família com as Avós da Praça de Maio. Elas haviam se dado conta de que os militares roubavam crianças sistematicamente, que se tratava de uma estratégia.

Em um contato, a Estela de Carlotto [líder das Avós] convenceu meus pais de que era perigoso ficar na Argentina. E eles foram para Vitória.

Em 1983 a ditadura argentina terminou e, em 1984, meus pais voltaram ao país.

Após ter sido jogado no quintal, fui encontrado e levado a um centro de adoção, e um casal começou a me criar. Logo eles se separaram e fiquei com a mulher.

Era uma casa cheia de crianças, sempre tinha muita gente entrando e saindo. Eu me lembro que, um dia, tocou a campainha e essa senhora que me criava foi para a sala. Depois de um tempo eu a ouvi chorando.

Abri a porta para ver o que era. Hoje entendo que eram três avós que haviam chegado para me localizar. Eu me lembro de olhar para elas e elas sorrirem para mim. Depois me dei conta: foi o momento em que fui identificado. Isso era em 1984.

Eu já sabia que era adotado. O processo não foi para a Justiça. A mulher reconheceu que eu não era seu filho. Mantivemos vínculos durante muitos anos, pois ela não tinha ligação com os militares.

Mas não foi o caso da minha irmã. Ela tinha sido apropriada por um cara do aparelho repressor, um cara barra pesada. Nesse caso, sim, a Justiça interveio, porque a apropriação foi um delito.

Foi um processo complicado: em um momento, ele fugiu com a menina. Depois da restituição, minha irmã nunca mais teve contato com esse militar, que foi preso.

Em setembro de 1985, minha família estava junta pela primeira vez. Em 1988, houve um levante militar na Argentina, e meus pais não quiseram ficar. Depois, conversando com a minha mãe, ela contou que eles já não se sentiam tão bem na Argentina. Era uma deixa para voltar ao Brasil. Fomos para Vitória.

Eu ainda voltei à Argentina para fazer faculdade, mas não consegui me adaptar e vim de novo ao Brasil. Meus pais tinham se separado e meu pai estava morando em João Pessoa.

Um amigo era dono de uma pousada e eu me mandei para lá, para gerenciar. Terminei aqui em Fortaleza, onde vivo desde 2004.

Eu me casei, tenho uma família, minha filha tem quatro anos. Um dia vou contar a ela como houve intervenções, de tantas pessoas, para que ela existisse. Eu poderia ser outra pessoa. Foi muita gente que fez de tudo para que a nossa família tenha sobrevivido à tragédia.


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