Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Mundo

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Entrevista - Elikia M'bokolo

Guerra no Mali evidencia questões econômicas de novo imperialismo

PARA HISTORIADOR, DISCURSO HUMANITÁRIO DA FRANÇA MASCARA RAZÕES FINANCEIRAS

ELEONORA DE LUCENA DE SÃO PAULO

A intervenção francesa no Mali tem origem na disputa por riquezas minerais e na herança colonial da região. Fronteiras artificiais impostas pelas potências no século 19 fraturaram povos, gerando insatisfações.

A análise é do historiador Elikia M'Bokolo, 68, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais em Paris e professor da Universidade de Kinshasa (Congo). Ele vê um "novo imperialismo", no qual as potências europeias precisam lidar com o apetite de emergentes como a China.

Bokolo, congolês especializado em temas do pan-africanismo, diz que a crise no Mali pode se reproduzir com a mesma violência nos países vizinhos. Para ele, a guerra também é consequência da "estupidez do Ocidente" ao derrubar Muammar Gaddafi, ex-ditador da Líbia, em 2011.

-

Folha - Como o sr. analisa a situação no Mali?

Elikia M'Bokolo - É fluida e incerta. A ação francesa é uma intervenção de uma antiga potência colonial. Tem uma imagem negativa para os africanos e malianos.

Quais as causas do conflito?

Há várias razões. A primeira é que essa região é muito instável, com uma população nômade. Esta teve um papel histórico muito importante no passado, fazendo as trocas entre a África negra e a África árabe, mediterrânea.

Com as fronteiras impostas no período colonial, a população se fracionou em muitos Estados. É um primeiro ponto de descontentamento. Essa população sonha em refazer uma junção territorial, com liberdade de movimento.

Quais são as outras razões?

Depois da colonização, o novo poder africano reteve a lógica territorial colonial. Toda essa população, considerada periférica e marginal pelas potências colonizadoras, hoje reivindica uma situação política e social melhor.

E há o apetite das potências capitalistas por essa região desértica. É sabido já há algum tempo que ela tem petróleo, gás natural, urânio.

Qual a razão mais importante?

O Ocidente enfatiza o lado étnico, religioso, de instabilidade. Nada fala sobre a economia, os recursos naturais. Esse é o lado importante. As grandes empresas francesas estão na África. A maior parte da eletricidade das centrais nucleares francesas é obtida com urânio africano.

A França fala da ação de radicais, da Al Qaeda. É ficção?

Não é tudo ficção. Mas no Mali o islã sempre foi moderado. Consumo de álcool, por exemplo, é permitido. O islã não é uma razão importante [do conflito], mesmo que haja muçulmanos cujo ponto de vista é extremista, da Al Qaeda ou de outros grupos. Não se pode transformar isso numa guerra cultural e religiosa.

A França diz haver ameaça.

A França tem posição ambígua sobre a África. Mesmo um presidente socialista como François Hollande adota esse discurso civilizatório, de que há risco, violação de direitos humanos. Tudo é discurso para a opinião pública. As questões são mais complexas. O governo francês joga em duas linhas: a ideológica, quase moral, e a econômica, em defesa de seus interesses.

A França tem o direito de intervir no Mali?

Não.

É certo considerar que há uma guerra imperialista em curso?

Sim. A África hoje é o continente que tem mais recursos naturais, e os países europeus querem essas riquezas.

E os chineses?

O grande medo do Ocidente é que eles ponham as mãos nesses recursos. Para que a China não esteja lá, uma série de práticas se multiplicam.

Uma delas são as intervenções chamadas de humanitárias. Há o estímulo a guerras civis, para que ocorram situações em que as empresas ocidentais possam usar esses recursos. A guerra econômica avança mascarada. Falamos todo dia de guerras étnicas, humanitárias. Mas as questões são econômicas.

É um novo imperialismo, no qual o velho imperialismo ocidental tem de lidar com o apetite dos emergentes.

Como é esse imperialismo, comparado ao do século 19?

No século 19, as potências não conheciam os recursos do subsolo. Hoje conhecem. Sua tática é dizer que a África em geral pertence ao Ocidente. E que a China -e depois Índia, Paquistão, Turquia, talvez o Brasil- não tem nada a ver com a África. Isso pode até desandar num conflito de caráter mundial entre a China e as velhas potências.

Isso seria possível?

Não acho imediatamente possível, mas não estou convencido de que é impossível.

O conflito está relacionado com a derrubada de Gaddafi?

O regime de Gaddafi representava um ponto de estabilidade na África do Norte, mas também era a passagem entre a África subsaariana e a mediterrânea. Derrubando Gaddafi e improvisando essa situação supostamente democrática -mas que não representa ninguém-, destruíram o Estado da Líbia.

As armas sofisticadas, os veículos militares estão nas mãos de grupos armados, que sabem que ninguém controla essa região há muito tempo.

A guerra do Mali é fruto do afundamento do regime de Gaddafi e da estupidez do Ocidente. O que se passa ali hoje pode se reproduzir amanhã com a mesma violência no Níger, na Mauritânia, e ninguém pode controlar isso.

Como reage a população?

A população do Mali é muçulmana e pratica um islamismo muito moderado. A presença dos tuaregues [nômades] nesse conflito é um risco extremamente grave. É particularmente sério o que já começou a ser visto em um certo número de vilas -há assassinatos de tuaregues. Isso pode se enraizar na região.

E a solução das armas não é a verdadeira. A solução é política, democrática: uma nova forma de Estado, descentralizado, para que a população dividida pelas fronteiras coloniais se organize e torne possível a integração.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página