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Transição na igreja

50 anos depois, Vaticano 2º continua a dividir católicos

'Batalha em torno do sentido' do concílio pesará na escolha do próximo papa

REINALDO JOSÉ LOPES COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Além de enfrentar os problemas que parecem mais urgentes para quem olha a Igreja Católica de fora -escândalos sexuais, intrigas no Vaticano e fiéis deixando a religião-, o próximo papa terá de lidar com o legado ambíguo do mais importante evento do catolicismo no século 20: o Concílio Vaticano 2º.

Pode parecer bizarro que uma reunião de bispos realizada 50 anos atrás (de outubro de 1962 a dezembro de 1965) ainda tenha tamanho peso na vida da instituição.

Mas o fato é que tanto o clero quanto os fiéis continuam envolvidos na "batalha em torno do sentido" do concílio, conforme diz o italiano Massimo Faggioli, historiador da igreja que trabalha na Universidade St. Thomas (EUA).

Todos os papas das últimas cinco décadas foram participantes-chave do encontro, e algumas das atitudes mais polêmicas de Bento 16 -reverter a excomunhão de alguns bispos tradicionalistas ou dar mais liberdade para celebrar a missa numa forma pré-Vaticano 2º- mostraram que ele tinha reservas sobre o papel histórico do concílio.

AUTORIDADE MÁXIMA

O papa João 23, que estava perto dos 80 anos quando foi eleito, surpreendeu a todos quando anunciou a intenção de convocar um concílio menos de três meses depois do conclave que o escolheu.

Esse tipo de reunião, que acontecera pela última vez em 1869-1870, caracteriza-se por ter máxima autoridade dentro da igreja, porque congrega, em tese, todos os bispos do mundo, ao lado do papa. Concílios desse tipo, ainda no Império Romano, definiram as crenças fundamentais do cristianismo, como a ideia de que Jesus é Deus e homem ao mesmo tempo.

A mecânica dos concílios lembra, grosso modo, a de um Parlamento -"deputados", os bispos, votam contra ou a favor de um "projeto de lei", um dogma ou uma orientação válidos para todos os católicos.

A diferença é que, ao longo dos séculos, o papa ganhou cada vez mais poderes para "legislar" sozinho e ter mais controle sobre o resultado das votações, quando ocorrem.

Apesar do estilo cordial e aberto de João 23, o Vaticano 2º poderia ter seguido esse figurino. "O papa dizia que o depósito da fé era único e não se devia mexer na doutrina. A questão era achar uma forma nova de anunciá-la no mundo moderno", diz o padre José Arnaldo Juliano dos Santos, capelão do mosteiro da Luz e historiador do Museu de Arte Sacra (SP).

Para isso, a Cúria (administração do Vaticano) já preparara uma série de documentos, esperando que os bispos discutissem apenas detalhes.

Mas um grupo de prelados europeus, em especial alemães, holandeses, belgas e franceses, resolveu questionar os pré-documentos e pedir debates mais abertos entre os bispos. "A frase que corria pela Cúria naquela época era a seguinte: 'A heresia vem do Norte' ", conta Rodrigo Coppe Caldeira, historiador da PUC-MG.

Esse grupo, que contava com a simpatia de João 23, conseguiu que a redação dos principais textos recomeçasse praticamente do zero. Um dos líderes da virada de mesa era o arcebispo de Colônia (Alemanha), cardeal Josef Frings. E uma estrela ascendente entre os "hereges" era um jovem teólogo, assessor de Frings: Joseph Ratzinger.

O futuro papa e vários dos principais "periti" (assessores teológicos dos bispos) queriam uma igreja que voltasse, de certa maneira, às origens do cristianismo -mais centrada na Bíblia e na figura de Jesus e com mais autonomia para os bispos, por exemplo, uma tendência apelidada de "retorno às fontes".

Também era forte a defesa da chamada "atualização" -a ideia de que a igreja devia dialogar mais com o mundo moderno. "Essas coisas não são mutuamente excludentes. Muita gente defendia que era preciso 'atualizar' retomando o cristianismo primitivo", diz Coppe Caldeira.

A combinação de "volta às fontes" e "atualização" se mostrou poderosa. Os documentos finais do concílio (veja quadro nesta página) retomam, por exemplo, a ideia antiga de que o conjunto dos bispos tem peso nas decisões da igreja, embora o papa mantenha sua primazia.

No lado da atualização, os textos elogiam o progresso da sociedade moderna, defendem a liberdade de consciência, buscam o diálogo com outros cristãos e as religiões não cristãs e abrem espaço para a missa em línguas atuais (no lugar do latim), com mais participação dos fiéis.

DIVERGÊNCIAS

Na esteira do concílio, afirma Massimo Faggioli, surgem ao menos três grandes tendências. De um lado, há tradicionalistas que afirmam que os textos conciliares são simplesmente heréticos.

Outro grande grupo vê o encontro como "apenas o começo": a partir dele, seria necessário partir para mudanças mais profundas, como o fim do celibato dos padres e uma igreja democrática.

E há os que, mesmo aceitando o concílio, acham que em alguns pontos ele foi longe demais. "Como ele abre as portas para a reflexão teológica dialogar com a ciência e com a modernidade, enxerga-se o risco de mexer no miolo da doutrina", diz Santos.

Nesse time está o próprio Joseph Ratzinger. Em alguns casos, ele acabou recuando na defesa inicial que fazia das mudanças -como mais autonomia para os bispos, por exemplo (passou a ser um defensor mais exacerbado da autoridade papal).

Em outros temas, porém, Ratzinger e outros "periti" do concílio criticaram desde o começo o que viam como excessivo otimismo dos textos.

O futuro papa chegou a classificar um trecho do documento "Gaudium et Spes" como "pelagianista" (ou seja, associado à antiga heresia do pelagianismo, segundo a qual o homem dependeria apenas de sua força de vontade, e não da ajuda de Deus, para fazer o bem).

Ratzinger também lamenta a perda dos antigos rituais em latim e a falta de atmosfera de contemplação na missa.

"Isso não quer dizer que ele seja um tradicionalista. Ele continua sendo um reformista, mas o medo dele é que a igreja acabe diluída no mundo", diz Caldeira. Resta saber em que medida esse medo estará presente no conclave.


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