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New York Times

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Armas químicas despertam repulso

LONDRES - Wilfred Owen, o soldado-poeta britânico, tentou descrever na sua obra mais conhecida, "Dulce et Decorum Est", os horrores das guerras químicas: "Se você pudesse escutar, a cada solavanco, o sangue / que sai gargarejando de pulmões corrompidos pela espuma".

A Alemanha foi a primeira a usar armas químicas em escala maciça, em 22 de abril de 1915, em Ypres (na Bélgica), onde 6.000 soldados britânicos e franceses sucumbiram. As armas químicas, raramente usadas desde então, voltaram a ser motivo de debate depois do massacre de agosto na Síria, no qual, os EUA dizem, quase 1.500 pessoas -homens, mulheres e crianças- foram mortas, muitas delas durante o sono.

Como na Primeira Guerra Mundial, isso representa apenas uma pequena fração das mais de 100 mil vidas perdidas durante os dois anos e meio de guerra civil na Síria. Mesmo assim, o presidente Barack Obama se preparou para iniciar uma reação militar dos EUA.

Por que, é justo perguntar, a morte de 100 mil ou mais pessoas com armas convencionais motiva pouco mais do que um preocupado dar de ombros, ao passo que a morte de um número relativamente pequeno com o uso de gás venenoso é suficiente para desencadear uma intervenção?

Quaisquer que sejam as razões para a distinção, ela já foi reconhecida há muito tempo.

Aproximadamente 16 milhões de pessoas morreram e 20 milhões ficaram feridas durante a Primeira Guerra Mundial, aquela que seria "a guerra para acabar com todas as guerras", mas apenas 2% das vítimas e menos de 1% das mortes são atribuídas a armas químicas.

Não obstante, a repulsa universal que se seguiu à Primeira Guerra Mundial levou ao Protocolo de Genebra de 1925, que proibiu o uso, embora não a posse, de armas químicas e biológicas. Em vigor desde 1928, o protocolo é um dos poucos tratados que se tornaram uma norma internacional. A Síria também é signatária.

Nenhum Exército ocidental usou gás no campo de batalha durante a carnificina global da Segunda Guerra Mundial. Adolf Hitler, ele próprio vítima de gás durante a Primeira Guerra Mundial, recusou-se a ordenar seu uso contra combatentes, por mais que estivesse disposto a gasear não combatentes judeus, ciganos e outros.

Desde a Segunda Guerra Mundial, as armas químicas passaram a ser categorizadas como "armas de destruição em massa", embora não tenham o poder letal das armas nucleares.

O Protocolo de Genebra não foi o primeiro esforço para proibir o uso de venenos nas guerras, segundo Joanna Kidd, do King's College, em Londres. "Ao longo da história, houve uma repulsa geral ao uso de venenos contra seres humanos na guerra, desde o tempo dos gregos."

Com os avanços na química, muitos países já haviam aceitado, na Convenção de Haia de 1899, não usar projéteis que contivessem "gases asfixiantes ou deletérios".

Houve poucos casos conhecidos de uso de gás venenoso desde 1925. Nos dois primeiros, o gás foi usado por regimes autoritários contra raças que eles consideravam inferiores. Em 1935 e 1936, Benito Mussolini usou gás mostarda na Abissínia (atual Etiópia). Em 1940 e 1941, os japoneses usaram amplamente armas químicas e biológicas na China, onde cápsulas intactas de gás venenoso continuam sendo escavadas.

François Heisbourg, consultor especial da Fundação para a Pesquisa Estratégica, em Paris, argumentou que uma das razões para o Japão parar de usar armas químicas foi o fato de o então presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, ter intervindo para dizer discretamente aos japoneses que os EUA "sabiam do uso e que haveria consequências".

Em 1965-67, o então presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, ordenou o uso intermitente de armas químicas numa longa e desastrosa guerra no Iêmen. O uso do agente laranja pelos americanos no Vietnã e seu impacto sobre a saúde humana foram amplamente criticados, embora ele fosse legalmente considerado um desfolhante.

Só na Guerra do Iraque (1980-88), iniciada por Bagdá depois da Revolução Islâmica iraniana, as armas químicas voltariam a ser usadas em grandes quantidades. O líder iraquiano da época, Saddam Hussein, as empregou contra as forças iranianas e também contra os curdos do seu próprio país. Os iraquianos usavam gases de nervos para atrapalhar ofensivas iranianas no sul do Iraque e evitar uma derrota. Houve pouco ultraje da opinião pública, já que eram muçulmanos envenenando outros muçulmanos.

A indiferença mundial foi alterada drasticamente em março de 1988, quando Saddam matou cerca de 5.000 curdos nos arredores da localidade de Halabja, deixando milhares de outros feridos, a maioria deles civis.

As mortes de Halabja, naquele que foi considerado o maior ataque químico já dirigido a civis, levou à Convenção de Armas Químicas de 1993, em vigor desde 1997, que proíbe não só o uso como também a posse, produção e transferência de armas químicas. Ele já foi assinado e ratificado por 189 Estados. Síria, Coreia do Norte, Sudão do Sul, Angola e Egito nunca o assinaram nem o ratificaram.

Sintomaticamente, disse Camille Grand, que trabalhou com desarmamento químico para os franceses, o Iraque nunca mais voltou a usar suas armas químicas.

"Halabja não mudou nada, mas mudou tudo", disse Heisbourg. "Na Guerra do Golfo, acabar com as armas químicas do Iraque se tornou um objetivo bélico, e nós o alcançamos, embora não soubéssemos nem acreditássemos nisso."

Mas isso ainda não explica por que o uso de armas químicas para matar talvez 1.500 pessoas na Síria atraiu uma reação tão forte. O ex-senador americano Richard Lugar disse que a diferença está no risco de proliferação. As armas químicas "podem ser a maior ameaça ao nosso país entre todos os riscos à segurança que temos, pois elas podem ser usadas por terroristas e por grupos muito pequenos", afirmou ele à BBC. "O uso dessas armas de destruição em massa tem de nos preocupar e nos preocupar a ponto de agirmos sempre que algum país ultrapasse esse limite e use tais armas, como fizeram os sírios."

Outros dizem que, ao usar gás contra os seus próprios civis, a Síria está violando tabus acumulados durante mais de um século. "Se simplesmente ficarmos de lado e não fizermos nada", disse Kidd, "qual é o valor do tratado e da norma?".

Embora os militares considerem as armas químicas difíceis de controlar, por causa dos caprichos do vento e do clima, elas podem ser eficazes contra quem está despreparado e são especialmente letais para civis. "Basta assistir aos vídeos de 21 de agosto na Síria", disse Heisbourg. "Isso é matar pessoas feito baratas."

Dezenas de milhares de pessoas foram mortas por facões em Ruanda, observou ele. "Isso é horrível, mas a produção e a venda de facões não são consideradas uma ameaça à segurança internacional."


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