Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

New York Times

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Inteligência/Despina Antypa

Receitas de sobrevivência

Bruxelas

Sobreviver a uma crise econômica é como sair vivo de um acidente aéreo. Você nunca mais será a mesma pessoa.

No começo, as más notícias eram apenas um sussurro que se espalhava pela cidade.

Histórias sobre pessoas que não conhecíamos que tinham perdido seus empregos.

Meu marido e eu trabalhávamos num dos maiores jornais de Atenas e nos sentíamos em segurança. Quando conhecidos nossos se viram sem trabalho de uma hora para outra, entendi que era hora de agir. Eu precisava aprender outra profissão que não fosse limitada por língua ou país, um problema que eu enfrentaria se tivesse que deixar a Grécia e quisesse encontrar trabalho como jornalista.

Comecei então a fazer um curso numa escola de confeitaria. Durante dois anos, todas as tardes, depois de trabalhar em horário integral como editora de artes no "Eleftherotypia", fiz aulas de confeitaria até as 22h. E passei todos meus fins de semana e muitas noites trabalhando para dominar as técnicas que tinha aprendido.

Quando meu marido e eu perdemos nossos empregos, em 2011, depois de trabalharmos por vários meses sem ser pagos, ficamos com nada a não ser o seguro-desemprego. Fazer doces virou minha terapia para combater o desespero. Trabalhei com afinco para criar o macaron francês perfeito. Este não deve ser confundido com o macaroon, que não tem recheio, cor ou aquela textura crocante e sensual. Os dois doces têm em comum o mesmo ingrediente básico: farinha de amêndoas.

Minha ideia era transmitir a essência da Grécia por meio de combinações de sabores tradicionais. Me lembrei das visitas familiares entediantes a nossos parentes no campo, onde comíamos os doces de figo de praxe, dos resquícios de gergelim no fundo de nossas malas escolares, das pilhas de cascas deixadas pelos famosos pistaches de Egina. Saboreei a memória do iogurte fresco misturado com marmelo que era oferecido generosamente nas tavernas depois de uma refeição pesada à base de carne bovina ao molho vermelho.

O horror das contas não pagas deu lugar à agonia pela qual me fiz passar para criar o macaron perfeito. Em vez de chorar de desespero pelo futuro negro que enfrentávamos, chorei diante do forno porque minhas criações delicadas não conservavam a forma. Depois de mais de 3.000 tentativas e erros -em sua maioria erros-, consegui dominar a arte de fazer o macaron perfeito. Eu estava pronta para vender meus macarons.

Investi cada centavo que tinha ganhado em fotos de alta qualidade, um site maravilhosamente projetado e embalagens de bom gosto. "Le macaron grec" nasceu, e as caixinhas verde-oliva de doces que eu estava vendendo eram minha chance de reconquistar o controle de minha vida, pensei.

Mas, como acontece tão frequentemente na Grécia, os burocratas tinham outros planos. Num país onde você é vista favoravelmente quando gasta dinheiro, mas como criminosa quando o ganha, abrir um negócio é um pesadelo. As exigências impostas a novas empresas na Grécia são absurdas e incluem a de que o negócio pague impostos adiantados equivalentes a 50% dos lucros estimados nos primeiros dois anos. Além disso, os impostos são recolhidos mesmo que a empresa sofra prejuízos.

Eu precisava de apenas 20 metros quadrados para meu negócio, mas fiscais me disseram que não poderiam me dar autorização de operar com menos de 150 metros quadrados. Fui obrigada a ter um banheiro separado para fregueses, apesar de que não teria fregueses aparecendo no local de trabalho. O departamento de bombeiros queria uma saída de emergência no mesmo lugar onde a prefeitura exigia que fosse erguida uma parede.

Como milhares de outras pessoas que tentam abrir seus próprios negócios, descobri que eu ficaria à mercê de funcionários públicos que interpretavam as leis para seu lucro próprio.

Assim, no inverno de 2013, meu negócio acabou antes de ter tido uma chance de decolar. Hoje o site na internet e algumas caixas vazias na parte de cima de meu armário são os únicos sinais do fim inglório de um sonho. O desespero estava tomando conta de mim e de meu marido. Não havia empregos para jornalistas na Grécia, e nossos seguros-desemprego tinham acabado.

Então surgiu uma oportunidade, de repente. Meu marido recebeu uma oferta para editar um jornal on-line, mas teríamos que nos mudar para que ele pudesse trabalhar em Bruxelas. Contraímos um empréstimo, enchemos um baú com apenas as coisas essenciais, nos despedimos de algumas pessoas e deixamos tudo para trás, sem lamentar nada.

Os primeiros dois ou três meses foram muito difíceis, mas finalmente consegui enxergar nossas provações sob outra perspectiva. Comecei a assistir a documentários sobre a Segunda Guerra Mundial, as histórias de europeus que perderam filhos, irmãos e pais e foram obrigados a comprometer sua dignidade e seu amor-próprio. Vi idosos, pessoas cultas e de modos refinados, forçados a vender duas xícaras de porcelana de Limoges ou um bule fino num mercado de pulgas, apenas para sobreviver. Estudei minha sogra, que nasceu na esteira da Grande Guerra, passou sua infância vivendo a Segunda Guerra Mundial, sua juventude na guerra civil grega e sua década dos 40 anos sob o peso da ditadura grega. Para ela, a crise econômica era um acontecimento normal da vida. E ela tinha conseguido ter uma vida longa e feliz, a despeito das dificuldades.

Mas como é que essa geração conseguiu superar todas as provações, e a nossa, não? Talvez porque nós tenhamos crescido com a droga mais potente de todas: a segurança.

E para mim, como para muitos gregos, essa droga se foi para sempre.

Envie comentários para intelligence@nytimes.com


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página