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Opinião

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Virgílio Afonso da Silva

TENDÊNCIAS/DEBATES

Tribunais de rua

Nos casos de linchamento, não há polarização entre direita e esquerda. A contraposição é entre civilização e barbárie

Há três meses, um homem foi amarrado nu a um poste no Rio de Janeiro. Era bandido, diziam. Há 13 dias, uma mulher foi linchada no Guarujá (SP). Era sequestradora de crianças, pensaram. O primeiro caso gerou polêmica, especialmente porque muitos defenderam o que ocorreu. Do segundo caso, todos quiseram se distanciar. Afinal, a mulher linchada até a morte era inocente.

Mas ambos os casos fazem parte do mesmo fenômeno: a justiça feita com as próprias mãos. Quem tenta se afastar do caso de linchamento argumenta que a mulher do Guarujá era inocente. Isto é: o que está em questão para muitos não é o linchamento em si, mas a culpa ou inocência de quem foi linchado.

Mas se a decisão sobre quem é culpado ou inocente é tomada pela própria população --e essa é a ideia que sustenta a prática da justiça com as próprias mãos--, então o erro de julgamento não justifica nada. Ele pode, quando muito, ser considerado um acidente de percurso. Além disso, essa justificativa é hipócrita na medida em que os justiceiros do Rio de Janeiro foram apoiados sem que se soubesse exatamente se o rapaz era culpado.

Em um Estado de Direito, nada justifica o desrespeito ao direito de defesa e de ser julgado por um juiz imparcial. Não há falha na segurança pública --e, no Brasil, as falhas são notórias-- que autorize qualquer pessoa na rua a fazer o papel de juiz.

Essa constatação é compartilhada por pessoas de vários matizes ideológicos. Se há algo que os adeptos tanto de um Estado mínimo quanto de um Estado mais proativo têm em comum é a ideia de que quem pode julgar (e condenar) as pessoas é o Estado, e somente o Estado.

Assim, ao contrário do que muitos pretendem, não há aqui uma polarização entre direita e esquerda ou entre conservadores e progressistas. A contraposição é entre civilização e barbárie.

A conquista civilizatória de não ser julgado pelo seu vizinho, de não ser apedrejado na rua, de não ser amarrado a um tronco não pode ser destruída porque o Estado em alguma medida falha em sua tarefa de garantir a segurança pública.

Embora trivial, essa constatação tem sido colocada em xeque não apenas pelas declarações daqueles que participaram desses atos de justiça com as próprias mãos (boa parte deles não pensa ter feito algo em si errado), mas também por declarações de apoio --ou, como preferem alguns, de compreensão-- por parte da mídia. Quando atos como esses são naturalizados em rede nacional, não se pode ficar calado.

Em primeiro lugar, porque está na hora de desmistificar a ideia de que quem é contra a justiça com as próprias mãos é a favor da impunidade. Ser contrário a que alguém seja amarrado nu a um poste e, ao mesmo tempo, ser a favor de que essa mesma pessoa seja responsabilizada por crimes que eventualmente tenha cometido são coisas incompatíveis somente na cabeça daqueles que pensam que nem todos têm direito a um julgamento imparcial.

Em segundo lugar, porque nunca é demais lembrar que liberdade de expressão implica responsabilidade. Quem apoia a barbárie em rede nacional merece ser criticado abertamente. Quem acusa os críticos de intolerantes, quem se acha patrulhado, quem pensa, enfim, que as críticas ferem sua liberdade de expressão parece não ter entendido muito bem o sentido dessa liberdade e a responsabilidade que seu uso implica.

Não fosse assim, teríamos que ser acusados de intolerantes ao repudiarmos aqueles que, no Guarujá, gritaram "é ela! é ela! é ela!". Afinal, eles estavam apenas exercendo a sua liberdade de expressão.


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