Folha de S.Paulo

Ruy Castro

Um beijo é sempre um beijo

RIO DE JANEIRO - "Se você tocou para ela [Ilsa Lund/Ingrid Bergman], pode tocar para mim", diz, esmagado, Rick Blaine (Humphrey Bogart) ao pianista Sam (Dooley Wilson), em "Casablanca". Sam toca "As Time Goes By" e nos esmaga também. O filme, de 1942, está fazendo 70 anos, e sua magia não acaba -tudo que lhe diz respeito nos diz respeito. De repente, informa-se que o piano de Sam irá a leilão na Sotheby's, em Nova York, na próxima sexta. Deve fechar entre US$ 800 mil e US$ 1, 2 milhão.

É um piano comum, de parede, com 58 teclas, sem marca à vista e, só agora sabemos, em tom de verde (o filme era em glorioso PB). E não tocou apenas "As Time Goes By". Sam passa o filme sentado a ele e, enquanto não chega a hora, nos brinda com "It Had To Be You", "Shine", "Baby Face", "Avalon" e outros sólidos "standards" americanos. Mas tudo cala na vez de "As Time Goes By".

Dooley Wilson tinha 56 anos quando filmou "Casablanca". Até ali, era um opaco baterista, cantor e ator. Detalhe: não tocava piano -nas filmagens, dublava a gravação de um pianista de verdade, Elliot Carpenter, que, fora das câmeras, mostrava-lhe a posição das mãos ao teclado.

Com o enorme sucesso do filme, Dooley começou a ser disputado pelos "nightclubs" de costa a costa. Quem não queria o fabuloso Sam em sua boate? O problema era quando o levavam ao piano e ele dizia, meio sem jeito, que não sabia tocar. O contrato era desfeito na hora.

Uma certa nuvem pode toldar o leilão. Que este piano é do filme, não se discute. Mas será o piano do Rick's, o bar de Bogart em Casablanca, ou o do La Belle Aurore, o bar de Bogart em Paris? Só se sabe que não são o mesmo piano -porque um deles está exposto no Warner Bros. Museum, em Burbank, Califórnia. Pensando bem, e daí? Um beijo é sempre um beijo, e Sam tocou "As Time Goes By" nos dois.