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Opinião

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Dany Laferrière

O momento do Haiti

Em meio ao terremoto em Porto Príncipe, foi preciso que as instituições desaparecessem para surgir um povo discreto e orgulhoso

Chego a Porto Príncipe no dia 6 de janeiro de 2010 para um festival literário. A vida parece retomar seu ritmo normal, após décadas de turbulência. Moças risonhas passeiam nas ruas, tarde da noite. O banditismo recuou um passo.

Nos bairros populares, como o de Bel-Air, a criminalidade não é mais tolerada. Pintores primitivistas batem papo com vendedores de manga e abacate nas esquinas de ruas poeirentas. Tudo é tão calmo que algumas pessoas já se inquietam.

Uma calmaria tão prolongada não é habitual em Porto Príncipe. Para o jovem com o rosto metade oculto por um chapéu de palha, um perigo novo nos espreitava. Perguntamo-nos o que poderia ser, pois já tínhamos visto de tudo: ditaduras hereditárias, golpes de Estado militares, ciclones repetidos e sequestros às cegas.

Estou no restaurante do hotel Karibé com meu amigo Rodney Saint-Eloi, editor de "Mémoire d'Encrier", que acaba de chegar de Montreal. Duas malas pesadas repletas de suas publicações mais recentes estão ao pé da mesa. Eu aguardava minha lagosta, e Saint-Eloi, um peixe ao sal grosso, quando ouvi uma explosão terrível.

Um segundo depois, estávamos deitados de barriga sob as grandes árvores do pátio. O terremoto foi tão forte que sacudiu a terra como se ela não passasse de um lençol que alguém tivesse tentado estender.

Nessa hora, as pessoas estavam espalhadas por toda parte na cidade: nas escolas, nos supermercados, no trabalho ou, ainda, presas nos engarrafamentos monstruosos que paralisam Porto Príncipe nos horários de pico. Toda essa agitação parou bruscamente às 16h53. O minuto fatal que cortou o tempo haitiano em dois.

Quando voltaram a si, muitas pessoas já estavam debaixo de escombros. Gritos nos chegavam, vindos do fundo da terra. Durante aquela noite trágica, deitados sobre o chão, ainda sentiríamos em nosso íntimo mais profundo 43 abalos sísmicos -alguns fortes, outros mal perceptíveis. Esse acontecimento tão radical teria um impacto profundo sobre a sociedade haitiana.

Um fato novo salta à vista. A cidade, durante aquelas primeiras noites, foi ocupada por uma multidão disciplinada, generosa e discreta. Pessoas andando de um lado a outro sem parar, com uma determinação estranha. Pessoas que pareciam indiferentes àquela dor, que suportavam com uma elegância que suscitou admiração universal.

O mundo ainda está grudado à telinha. Temos a impressão de assistir a uma cerimônia estranha que envolve os vivos e os mortos. Espantamo-nos pelo fato de pessoas poderem passar tanto tempo sob os escombros, sem beber ou comer. É que eles têm o hábito de comer pouco. Como é possível pôr o pé na estrada, deixando tudo para trás? É que as pessoas já possuem tão poucas coisas. Quanto menos objetos inúteis se possui, mais se é livre, e não estou fazendo um elogio à pobreza.

Não foi a desgraça do Haiti que comoveu o mundo a esse ponto, mas o modo como os haitianos enfrentaram seu infortúnio. Esse desastre fez surgir diante de nossos olhos fascinados uma floresta de pessoas notáveis que as instituições nos escondiam.

Foi preciso que as instituições desaparecessem momentaneamente para que víssemos surgir, sob uma nuvem de poeira, um povo ao mesmo tempo discreto e orgulhoso. Então, tirei meu caderninho preto do bolso para tomar nota desse fato intrigante: se os imóveis desabaram, as flores sobreviveram.


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