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Opinião

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Antonio Maria Claret

O lado técnico da tragédia

Menosprezada no Brasil, a engenharia de incêndio oferece uma segurança a edificações de que nenhuma norma técnica é capaz

Os incêndios sempre estiveram entre as catástrofes mais desafiantes de todos os tempos. Contam com nossa inércia e descaso para ceifar vidas sem piedade. Dessa vez, as vítimas foram os jovens de Santa Maria (RS). Mas, antes, muitos outros sucumbiram às suas armadilhas.

A sociedade se revolta. Quer nomear culpados e trazê-los a julgamento público. Embora mereça respeito a dor dos que perderam filhos e amigos, nenhuma intenção, verdadeira ou bravata, será capaz de aplacar a fúria das chamas.

Contra a surpresa do fogo, é preciso usar de vigilância. Não uma vigilância que impeça o sono, mas aquela que se infiltra nas regras de convívio e se materializa em rotinas de aprovação de projetos e de concessão de alvarás e licenças.

Não devem ser meros atos burocráticos, diluídos na responsabilidade de bombeiros raros e prefeituras muitas, porque eles criam o que agora se quebrou: a ilusão de segurança. A vigilância não prescinde da educação, especialmente da cívica, que responsabiliza cada um pela segurança de todos.

Mas, a segurança oficial das normas não basta: é também ilusão de segurança, porque as normas técnicas existentes, muitas vezes, carecem de bases justamente técnicas.

O esforço de normalização da segurança contra incêndio empenhado pelos corpos de bombeiros merece reconhecimento público, mas existe uma engenharia de incêndio, ou uma ciência dos incêndios, que não lhes está ao alcance e que é pujante em outros países.

No Brasil, tem inexpressivo lugar nas academias. Apenas o foco da proteção passiva de estruturas merece estudos, ainda não avançados, em várias universidades e em um laboratório da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Dessa ciência, emanam novas tecnologias e métodos de projeto, que tornam as edificações materialmente mais seguras.

Muitos vão dizer o que faltou à boate Kiss. Pode ser que tudo o que digam tenha mesmo faltado, mas o principal antecede esse fatídico evento: são estudos brasileiros de comportamento humano em pânico; pesquisas brasileiras de reação ao fogo de materiais; estudos brasileiros da densidade de ocupação das edificações e de sua carga de incêndio; pesquisas brasileiras de planos efetivos de escape em condições de pânico.

Bombeiros têm lutado por isso e para efetivar a normalização técnica. Mas o atendimento de nenhuma norma prescritiva brasileira, sejam elas oficiais ou convencionais, como as da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), pode dar à edificação a segurança que projetos responsáveis de engenharia de incêndio proporcionam.

Nesse momento de consternação, pensemos em nossas centenas de escolas, boates, cinemas, shoppings, estádios e edifícios: todos vivem a doce ilusão de segurança. É necessário fazer algo mais que nomear culpados pós-tragédia; é necessário viabilizar novos centros de pesquisa em engenharia de incêndio.

O país, como os seus vizinhos, não tem um só cone calorímetro, equipamento que está para o engenheiro de incêndio como o microscópio está para o biólogo. É preciso repensar as bases legais do trabalho de prevenção dos bombeiros, ao mesmo tempo em que é urgente flexibilizar os projetos de edificações, dando vez à engenharia de incêndio.

Infelizmente, em todo o mundo, as revoluções da engenharia de incêndio se iniciaram após grandes tragédias. O episódio do edifício Joelma, em 1974, deu início ao movimento por uma normalização ampla da segurança contra incêndio no Brasil; que seja aprofundado com a boate Kiss de Santa Maria.


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