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Legado de um papa
Questão da identidade religiosa foi a marca mais forte de um pontificado que se destacou pela recusa a conquistas da modernidade
Para boa parte da opinião pública ocidental e leiga, o pontificado de Bento 16 deixa marcas inconfundíveis de conservadorismo. Mais que isso, de um desajuste renitente diante das conquistas da modernidade, em especial nos planos dos costumes e da biomedicina.
Embora os temas do amor conjugal e da ênfase na solidez da vida familiar façam parte do repertório das principais religiões, é inegável que as preocupações do Vaticano a esse respeito adquiriram uma insistência que tendeu a minimizar outros aspectos que seriam igualmente importantes do ponto de vista pastoral.
Ambiente natural, tráfico de drogas, escravidão, armamentismo, desigualdade social, fraudes corporativas -há, nas manifestações do Vaticano, palavras oportunas sobre esses e outros problemas, sem que tenham surgido, entretanto, como bandeiras tão nítidas quanto as referentes à vida sexual.
A imagem de conservadorismo que se associa a seu papado merece ser contextualizada. Nos EUA, por exemplo, as manifestações da Igreja Católica contra a pena de morte, contra a guerra no Iraque e a favor da ampliação do acesso à saúde pública encaminharam-se na direção contrária à do pensamento conservador por lá.
Tampouco se pode considerar que, numa perspectiva global, o conservadorismo seja responsável pela perda de fiéis. No Brasil, onde cresce a audiência para os cultos evangélicos, provavelmente o que se busca, em muitos casos, é uma visão de mundo ainda mais conservadora que a do catolicismo.
Temas como casamento gay e fim do celibato talvez não sejam, por outro lado, decisivos para a maioria dos católicos. Sob a ótica de muitos, o pontificado de Bento 16 teve sentido mais profundo.
É possível que o papa fique marcado como alguém que valorizou a questão das identidades no mundo contemporâneo. Bento 16 trouxe a percepção de que a aderência dos fiéis se faz pela afirmação das diferenças, de modos de vida próprios, capazes de conferir segurança interna aos indivíduos -sem o risco da indiferença ou da diluição.
O quanto isso pode dificultar os ideais de tolerância próprios do mundo contemporâneo é uma questão em aberto. Notável intelectual, Joseph Ratzinger conseguiu ampliar o diálogo da igreja com filósofos agnósticos e, ao mesmo tempo, solidificar pontes e interesses comuns com representantes de outras religiões igualmente tradicionalistas, como muitos grupos evangélicos e os muçulmanos.
Foi uma tarefa difícil, sujeita aos acidentes de uma personalidade que não se notabilizava pelo carisma ou pela facilidade de comunicação. O próximo papa, provavelmente, terá a missão de suprir essas deficiências, mas é improvável que se desvie, no curto prazo, do trajeto delineado até aqui.