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J. P. Cuenca

O farol do fim do mundo

Passava da uma hora da manhã quando chegamos à construção de 1861 sobre penhasco em Ibiza

El Faro de la Mola fica na extremidade oriental da ilha de Formentera, ao sul de Ibiza, na Espanha. É um farol de 20 metros debruçado sobre um penhasco de 200. A construção de 1861 fica no bairro do Pilar de la Mola, um platô cercado por desfiladeiros e isolado do resto da ilha, com 50 casas brancas, uma igreja e um moinho. Ao redor das construções mediterrâneas, pequenos comércios, vinícolas e muita pedra.

Passava de uma hora da manhã quanto chegamos lá pela primeira vez. A lua estava cheia, era uma noite clara de verão. Quando nosso carro ultrapassou o pequeno grupo de casas, a planície se impôs no vazio de uma longa reta até avistarmos, ao fim da estrada, o farol varrendo o escuro em fatias de luz. Era um totem com olhos incandescentes para além do abismo.

Não por acaso, Júlio Verne inspirou-se nesse lugar para escrever "Hector Servadac" (1877), cujos protagonistas viajam pelo espaço sobre um pedaço da Terra arrancado por um cometa. Os precipícios que guardam a área plana e árida perto do farol delimitam um espaço que pode ser tanto um aeroporto para óvnis quanto a própria representação de outro planeta.

Estávamos sós. A casa do faroleiro apagada, nenhum outro carro estacionado. Seguimos o rastro luminoso do farol até a extremidade última da ilha, um ângulo de 90 graus em pedra que despenca até onde o oceano castiga a costa em explosões de espuma. No caminho, encontramos pequenas pirâmides e arranjos improvisados com pe- dregulhos entre as trevas da ve- getação rasteira. Obras de hippies ou moradores entediados que, naquele panorama remoto, pareciam inumanas e sinistras.

Quando chegamos até onde não poderíamos mais andar, nenhuma cerca nos separava do fim.

Como a vertigem é o impulso da queda, você não tem vertigem. E eu tenho. Por isso, você caminha na minha frente. Eu paro com as pernas trêmulas e te vejo avançar um pouco mais, desafiando o vazio. O mar bate lá embaixo, as estrelas brilham sobre as nossas cabeças --próximas como aqueles adesivos fluorescentes colados ao teto da sua infância, você diz.

Verne sabia que a viagem de dois anos pelo cosmos proposta em "Hector Servadac" era impossível. Por mais que ele cientificamente sugerisse dias mais curtos, menor gravidade ou um sol que nascia no poente --"todo um universo de cabeça para baixo" --, não existe possibilidade de que uma pequena atmosfera acompanhe pela galáxia um cometa com partes do mundo acopladas a ele (a ilha de Formentera inclusive) e seres vivos. Por isso, o capitão francês que escreve poemas de amor se chama Servadac. O nome ao contrário grafa-se cadavres --"cadáveres".

No capítulo 4, o capitão Servadac trabalha num rondó para a sua amada. É um poeminha bobo sobre como juramentos e blá-blá-blá são inúteis perto do verdadeiro amor, sugerindo uma práxis amorosa acima do discurso. Pouco antes de ser atingido pelo cataclisma que irá arremessá-lo ao universo, ele parece esquecer disso e volta a fazer promessas à mulher que enxerga por trás do papel. O impacto interromperá suas palavras: "Acredite, o meu amor é seguro! / Eu prometo / Que eu te amo, eu juro / E para...".

Em Formentera você olha para trás e me chama, estendendo a mão. Eu venço o meu medo de altura, nos beijamos a um passo da queda livre. Hoje à noite, a luz do farol do fim do mundo continuará seu movimento pelo Mediterrâneo. Até que nos alcance.


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