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Invasão Barbara
BARBARA GANCIA barbara@uol.com.br
Atacama ainda verá 'Indiana Gancia e o Templo da Perdição'
É tanta beleza junta que até o mais convicto dos infiéis cai de joelhos e agradece por ter nascido
O aventureiro que existe em mim me impele a levar um refrigerante. Só que, duas horas depois, esqueço que a lata estaria quente e que poderia estourar na minha cara
O sujeito que nos levaria do aeroporto de Santiago ao hotel apenas reforçou minha tese de que todos os motoristas do mundo são malufistas.
Sem que ninguém perguntasse, o infeliz se pôs a comparar Chile e Brasil e a execrar programas assistenciais que, segundo ele, só serviriam para deixar a turma lagarteando na rede.
Era muito cedo ainda e eu estava cansada da viagem, mas não pude me furtar de lembrar ao filho bastardo da Thatcher com Pinochet de que o Bolsa Família é replicado por bancos mundiais de todas as galáxias e que a grande maioria das pessoas prefere a dignidade de ter seu próprio ganha-pão a receber esmola.
Mal sabia que, apesar deste início conturbado, aquele seria o único dissabor que eu viveria nas minhas férias chilenas.
Na manhã seguinte, rumamos a San Pedro de Atacama, uma espécie de Arembepe, Alto Paraíso ou Mauá dos Andes, um lugar "astral", em que a energia dos minerais concentrados no solo, a altitude (2.400 m) e um céu limpído a ponto de atrair observatórios astronômicos dos EUA, Japão, União Europeia e Brasil fornicam cosmicamente dando à luz um pequeno oásis entre deformações rochosas no meio do deserto do Atacama, na região norte do Chile.
Hola, vulcão Licancabur (5.900 m), não levante a voz para mim, sim? A paisagem que vejo pela janela do quarto do hotel é sofrida, à primeira vista nada parece acolhedor. Os movimentos tectônicos ali já foram intensos, as erupções vulcânicas, constantes (ainda hoje são 150 os vulcões ativos no Chile), e aquele solo já viu erosões e sentiu nos ombros tanta cinza e cascalho que a impressão que se tem ao mirar o horizonte é de estar com os pés fincados sobre a planície do Atacama, cobrindo mil km de extensão entre os Andes e o oceano Pacífico, é pisar as entranhas da terra.
ENXURRADA DE SAL
Sou uma médica e meu estetoscópio ausculta as manifestações peristálticas do planeta que ecoam no éter há milhões de anos. Posso sentir o sal carregado de enxurrada pelas águas vindas das cordilheiras e os elementos cuspidos pelos vulcões que se sedimentaram sobre a superfície, em composições de uma beleza tamanha que a gente só pode concluir que Deus, se resolvesse mudar de profissão a esta altura do campeonato, daria um tremendo de um decorador.
No hotel, selecionamos alguns entre os 109 passeios disponíveis no cardápio.
Fazemos as nossas escolhas tendo em vista a condição física. É preciso levar em conta o grau de aclimatação (para qualquer atividade acima dos 3.500 metros convém esperar dois dias).
Já cheguei tinindo, com fôlego de pré-boliviana. Natural, portanto, que passe a primeira tarde com o bumbum acomodado numa van.
Vamos visitar um salar que mais parece o planeta Tatooine, terra de Anakin Skywalker (Darth Vader), e me dou conta de que estamos no deserto mais seco do mundo.
Mas, contrariamente ao sugerido pelo hotel, não tenho de carregar na mochila um cantil cheio. Noto que há sempre um guia, geólogo, biólogo ou astrônomo disposto a ceder o seu gentilmente caso precise.
É claro que, na caminhada ao Valle do Arco-Íris, onde argila, sal, areia, quartzo, estanho e sei lá quantos outros minerais estão acomodados em camadas como se fosse num bolo, eu passo da conta.
O aventureiro Reinhold Messner, italiano considerado por muitos o melhor alpinista do mundo, que existe em mim --terá sido meu lado Edmund Hillary, o primeiro a escalar o Everest?--, não sei, me impele a colocar uma latinha de refrigerante gelado na mochila (cantil, eu?).
Só que, duas horas de caminhada depois, quando chega o momento ideal para sorvê-lo, esqueço que a lata estaria quente e que o conteúdo gaseificado iria explodir na minha cara.
No dia seguinte, o calor sossega, e eu também: para ver os gêiseres de Tatio, a 4.200 m, acordamos às 4h30, (temperatura de 8°C) e, ao longo da manhã, vamos nos despindo em camadas, feito cebola, até terminar dentro de uma das piscinas das termas de Puritama a 3.200 m, em que a temperatura da água fica sempre nos 30ºC.
O MAIS GLORIOSO
A variedade de cenários do Atacama é maior do que a lista de ilícitos atribuídos ao Daniel Dantas. No passeio seguinte, você estará montado num cavalo ou caminhando pelo Vale da Morte na companhia de guanacos, lhamas, vicunhas e alcaparras, desculpe, alpacas. Note que os "camelos dos Andes" cruzam entre si, o que deve dar um banzé danado. Dizem que mulas, burros e éguas morrem de inveja.
Diversidade de paisagens e de inquilinos. Nos gêiseres, foi impossível não lembrar do parque Yellowstone. Além da paisagem sósia, uma raposa, muito familiarizada com humanos, tadinha, só faltava bater no vidro das vans para pedir aos turistas: "Moço, me dá uma moeda?" Como não lembrar do habitante mais famoso do parque de Jellystone, o Zé Colméia?
Quando você acha que o repertório vai acabar e que não há como o próximo passeio ser mais formidável do que o anterior (tínhamos sido avisadas por amigos de que estávamos indo ao "lugar mais glorioso do mundo"), os caras sugerem que você conheça a Reserva Nacional Flamingos, a 3.500 m, uma paisagem que parece extraída de um quadro de Pancetti misturado, deixa ver, aos lagos de Bariloche.
São salares em meio a montanhas com vastos plateaus interlacados. E tudo é permeado por vento e um silêncio de fundo capazes de fazer com que até o mais convicto dos infiéis caia de joelhos, alce as mãos aos céus e agradeça por ter nascido.
Você se pergunta como pode tanta coisa linda estar junta no mesmo lugar. E como é possível que eu tenha levado 56 anos para chegar ali? O segredo parece estar guardado com os cáctus de mais de nove metros espalhados pela trilha que percorremos na manhã do dia seguinte.
São centenas deles, que crescem um centímetro ao ano. Faça as contas. Cada um tem cerca de 900 anos.
Esses grandalhões hostis que sobrevivem estoicamente em meio à aridez viram a desintegração do império Tiwanatu, a ascensão dos incas, a chegada da turminha do barulho encabeçada por don Pizarro, que colocou fim à transmissão da cultura indígena, decepando línguas de locais e levando no embrulho o idioma atacamenho, o kunza, uma variação do quetchua que até hoje resiste em outros povoados andinos.
De tudo que os cáctus já viram, uma coisa é certa: logo eles irão testemunhar "Indiana Gancia e o Templo da Perdição", meu regresso retumbante ao Atacama. Uma vez só nesse paraíso é muito pouco.