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Zeca Camargo

O dente de Buda

Aparentemente, o dente de Buda faz as vezes de Santo Antônio em Kandy, no Sri Lanka

Lá estava ele, diante de mim. De mim e de mais algumas dezenas de devotos que tinham feito a peregrinação até Kandy, no Sri Lanka, para vê-lo perto.

Ajoelhados, nenhum de nós sabia muito bem com o que o objeto se parecia. Afinal, ele estava trancado numa espécie de santuário, aberto apenas em ocasiões muito especiais --e, ainda sim, só alguns escolhidos podiam chegar perto dele. Mas a fé de todos que me cercavam garantia-me que atrás daquela porta --e de outra porta, e de outra porta-- estava o dente de Buda.

Eu talvez fosse o único que estivesse ali pela primeira vez. Todas as outras pessoas com quem conversei na ocasião já eram "habitués" --inclusive uma senhora que voltava aquela tarde para pedir (novamente) por sua filha. Ou, melhor, para que sua filha arrumasse casamento. O dente de Buda aparentemente faz as vezes de Santo Antônio: mais de um casal estava ali para deixar flores de lótus, agradecendo assim a graça alcançada.

Os guias que consultei ofereciam descrições diferentes do objeto de tanto culto. O mais irônico deles, se me lembro bem, o aproximava de um dente de javali --um incisivo certeiro, amarronzado, incapaz de se encaixar em contornos humanos (ou mesmo divinos). Mas ninguém estava lá para ver nada, só para sentir. Esse é o mistério da fé.

Encarei a expedição a Kandy (parte de uma reportagem maior que fazia no Sri Lanka) com olhar de jornalista. Tenho enorme respeito pelos budismo --chego a dizer que sou um "budista amador"--, mas senti-me na obrigação de abordar o dente de Buda com cautela. Sabia que não iria vê-lo de perto, mas seria possível sentir sua força?

Na breve visita que fiz à sala onde ele fica --na verdade, uma varanda--, estava preocupado em entrevistar as pessoas. A atmosfera ali estava mais para a agitação do que para a contemplação. Tudo parecia dificultar o foco na espiritualidade do local.

Mas então, logo na saída do templo, num jardim onde as crianças pareciam disputar com pássaros as trajetórias mais imprevisíveis, uma árvore me chamou a atenção. Não era particularmente frondosa, mas era bonita. E estava cercada de centenas de pequenas estátuas de Buda. Não eram antiguidades --quando vai para esses lugares, a gente acha que tudo é precioso... Eram estatuetas simples, recentes, várias de plástico colorido, algumas de madeira, umas poucas de porcelana.

O motorista que fazia parte da minha equipe veio me apressar para não pegarmos a estrada de volta à capital, Colombo, antes de escurecer --prudente, ele sabia bem o risco que corríamos ao viajar naquelas vias à noite. E aprovei- tou para me contar que aquela árvore em particular era especial porque tinha crescido de um ramo original da própria planta onde Buda havia meditado até ter se tornado "o iluminado".

Disse então que já estava indo e aproximei-me da árvore. Sentei-me ao seu pé. As crianças continuavam a correr --mas agora suas mães corriam atrás delas. O sol de fato já estava se pondo, mas a luz que restava era mais um convite para que eu ficasse ali por mais um tempo. Peguei duas ou três pétalas de flor de lótus e as segurei nas mãos, como numa cuia. E fechei os olhos.

Meu motorista contou depois que buzinou até quase ficar sem bateria. Mas, quem sabe inspirado por dente de Buda, eu só levantei de lá quando achei um pouco de paz.


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