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Zeca Camargo

Livre em Hong Kong

Por que viajar para lugares onde as pessoas se sentem intimidadas em se expressar?

O grande prato da noite chegou à mesa, e quando a dona do lugar onde estávamos tirou a tampa de barro que o escondia, todos em volta de mim soltaram aquele "hummmm"

-e eu emiti apenas um "oh". Mesmo para um viajante acostumado a comer de tudo, aquela bandeja repleta de pés de patos cozidos, amontoados como numa sinistra árvore de Natal, provocava hesitação. Ng foi o primeiro a tirar um deles e me oferecer.

Inseguro de como encarar aquela iguaria -ou mesmo do que exatamente comer nela-, esperei o próprio Ng saboreá-la: o segredo era degustar a fina pele que envolve o pé de pato, com atenção especial à membrana que liga os "dedos" dele. Tomando sempre o cuidado de cuspir as falanges desembrulhadas por minuciosas acrobacias da língua nos dentes.

Se para mim isso exigia um certo esforço, os outros convivas desfrutavam o jantar com desenvoltura -e o volume da conversa na mesa só crescia, para competir com o som ambiente. O restaurante estava mais para um boteco -o tipo de lugar "alternativo" onde um local gosta de levar um estrangeiro para mostrar o "lado b" da sua cidade. Curiosamente, porém, apenas uma pessoa naquela mesa era mesmo de Hong Kong: uma atriz de cinema aspirante, com um nome tão impronunciável que ela se apresentava como Spring (Primavera, em português).

O resto do grupo era formado por um malaio (Richard -um nome também "adaptado") e sua namorada -um casal que tinha conhecido no dia anterior, na Disney de Hong Kong; Demetra, uma milionária grega, cliente de Richard (que era publicitário) e melhor amiga de Spring, e mais dois amigos da atriz que trabalhavam no mercado financeiro: Thomas (também adaptado), um tailandês, e o vietnamita Ng -que é sim um nome, ou melhor, um sobrenome.

Mais que cosmopolita, minha turma daquela noite era vibrante. Depois do jantar, fomos a um karaokê de fazer inveja ao meu caro Cuenca, colega desta coluna: uma luxuosa sala privada regada ao melhor uísque escocês (e onde a única música em inglês que se ouviu foi a escolha para minha tacanha performance: "Freedom", de George Michael). E tudo terminou num daqueles bares do alto de um arranha-céu, bebendo taças de um suspeito champanhe olhando o porto de Victoria.

Lembrei-me imediatamente dessa noitada quando comecei a ler sobre os protestos recentes de jovens em Hong Kong pedindo -em linhas bem gerais- uma democracia mais transparente. Fiz essa viagem em 2006, quase dez anos depois de a Inglaterra ter "devolvido" a ilha para a China, com a promessa de que as liberdades democrática estabelecidas seriam mantidas. As mesmas liberdade que, como as multidões deixaram claro, estavam ameaçadas.

Teria eu escolhido visitar uma Hong Kong como a que se esboça? Novos lugares, para mim, significam a possibilidade de conhecer gente nova. Por isso me questiono: por que viajar para onde as pessoas se sentem intimidadas em se expressar -ou temem um contato com um estrangeiro?

Já fui a países assim -a própria China continental. Mas sempre a trabalho. A turismo, opto por não visitar governos opressores -razão pela qual surpreendo quem me pergunta se conheço Cuba, entre tantos destinos óbvios que alguém à beira de conhecer o centésimo país já deveria ter explorado. Se eu não me sentir à vontade para conversar com ninguém, qual a razão de ir até lá?

Mas o mundo, como sabemos, gira... Países -e sobretudo seus políticos- mudam a toda hora. Mianmar, por exemplo, é um destino tentador que há anos evito, mas que agora parece estar mais aberto e convidativo. Será que Hong Kong um dia vai entrar para minha lista de lugares a serem evitados?

Não falo há um bom tempo com Ng, mas vou ver se acho aqui nos meus arquivos seu e-mail para, pela voz de um "nativo", saber como estão as coisas por lá. É perguntar se ele tem comido pés de pato...


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