PAULO ROBERTO PIRES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nada que é escrita foi estranho a Carlos Heitor Cony. Em 70 anos ininterruptos de trabalho, encarnou como poucos no Brasil a figura do escritor profissional. Visitado com frequência pela musa incontornável da encomenda, fez do deadline o horizonte frequente de uma longa lista de romances, relatos jornalísticos, adaptações de clássicos, biografias, roteiros de cinema e até argumentos de telenovelas.

Virtude ambígua em literatura que se quer emulada por gênios, a versatilidade terminou sombreando o soberbo talento de um autor de difícil definição, vincado pelo desencanto do jovem seminarista que abjurou a fé para passar a vida recusando qualquer pertencimento coletivo, da estética à política.

Foi Ênio Silveira quem decidiu publicar em 1958 o romance que Cony, um jovem jornalista, viu recusado num concurso oficial por seu conteúdo"forte". Sufocante, "O Ventre" acompanha a trajetória de um filho da classe média carioca que, fruto do adultério da mãe, vive num mundo inóspito que tudo lhe recusa.

Memória
Carlos Heitor Cony morre aos 91 anos no Rio

Nascia assim um escritor que conjugava o fino trato existencial dos personagens com uma popularidade incomum. Contratado pela Civilização Brasileira, entregava praticamente um livro por ano. Dentre estes, há pelo menos duas joias, "Informação ao Crucificado" (1961), relato de tintas autobiográficas sobre um seminarista e a dúvida da conversão, e "Antes, o Verão" (1964), tristíssima crônica de um fim de casamento ambientada numa casa de praia varrida por ventos e areia.

No ano do golpe de 64, o romancista best seller torna-se desassombrado crítico do regime. Mais de mil pessoas vão à Cinelândia na noite de autógrafos de "O Ato e o Fato", compilação de crônicas do jornal Correio da Manhã que dão conta dos movimentos sinuosos da quartelada.

O encontro da política com sua literatura meditativa, para dentro, não é pacífico. Preso seis vezes pela ditadura, escreve, entre uma cadeia e outra, "Pessach: a Travessia". Nesse romance de 1967, consuma-se a visão do homem radicalmente só, desta vez indisposto com a luta armada e com princípios tidos como pacíficos por determinada militância de esquerda.

Perseguido pelos militares e marginalizado por seus opositores, submerge numa longa colaboração com Adolpho Bloch, das revistas à extinta TV Manchete. Em "Pilatos", romance iconoclasta de 1974, declara romper com a literatura. Para que se tenha a temperatura do livro, seu protagonista vaga pelo Rio de Janeiro carregando um vidro com o próprio pênis amputado.

Cony só voltaria à literatura, e em grande estilo, 20 anos depois. Quase memória, o delicado romance em que acerta contas com o pai, desperta reações apaixonadas. Sempre achei comovente testemunhar como um escritor reencontra, para valer, seu público leitor.

Seria injusto exigir dessa fase final a excelência de seus melhores momentos. Mas dela fica ainda "A Casa do Poeta Trágico" (1997). A enviesada história de amor que nasce entre as ruínas de Pompeia traz ecos do magnífico "Viagem à Itália", de Roberto Rossellini, e a marca inconfundível do romântico antissentimental que Cony sempre foi.

À margem do cânone, a léguas da unanimidade, Carlos Heitor Cony não é óbvio. Em algum momento, de alguma forma, ele não se deixava capturar. Sua grande arte talvez tenha sido a fuga, garantia de que nem o mundo nem ninguém iria esmagar sua radicalíssima singularidade, princípio desde sempre inegociável.

PAULO ROBERTO PIRES é jornalista, crítico e editor da revista "Serrote"

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