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Seca extrema na amazônia destrói turismo em comunidades ribeirinhas

Comunidades do rio Negro calculam prejuízo de quase R$ 200 mil apenas em outubro, por cancelamentos

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Trechos secos de rio em frente a uma comunidade

Comunidades Santa Helena do Inglês, em Iranduba (AM), que foi afetada pela seca extrema que atinge especialmente o Amazonas FAS (Fundação Amazônia Sustentável)/Divulgação

Iranduba (AM)

Comunidades do rio Negro que, até pouco tempo atrás, ofereciam quartos com vista para uma imensidão de águas amazônicas miram agora, vazias de visitantes, o solo rachado pela seca histórica que atinge a amazônia. Com as reservas canceladas em pousadas e restaurantes comunitários na região, quase R$ 200 mil deixaram de ser arrecadados em outubro.

A Folha esteve, no último final de semana, em duas comunidades ribeirinhas do Amazonas em que o chamado turismo de base comunitária é uma das fontes de renda.

Como tem ocorrido desde o início da seca, não havia turistas no Saracá e em Santa Helena do Inglês. A consequência para a economia local é lógica: potencial acúmulo de dívidas.

Na comunidade Saracá, localizada dentro da RDS (Reserva de Desenvolvimento Sustentável) Rio Negro, no município de Iranduba (AM), Pedrina Brito de Mendonça, 40, aproveitou a ausência total de visitantes para reformar parte das hospedagens oferecidas.

Do momento atual até janeiro, ocorreria uma das principais épocas de turismo na região. Em outubro, porém, o rio Negro atingiu o menor nível da história.

Segundo Pedrina, não faria sentido as pessoas tentarem ir para lá agora. Apesar da estrutura com restaurante, quartos privativos e até ar-condicionado na pousada no Saracá, não tem como haver conforto na situação atual.

Além da dificuldade de acesso, há também questões de segurança. Afinal, com o braço do rio Negro praticamente seco em frente à comunidade —restando apenas um lago, sem acesso ao rio em si—, qualquer deslocamento de emergência se torna um desafio.

"Imagina alguém passar mal aqui", diz Valcléia Solidade, superintendente de desenvolvimento sustentável da ONG FAS (Fundação Amazônia Sustentável), que apoia os projetos da região.

Algumas horas depois, o receio se materializou. Já era noite quando Sebastião Brito de Mendonça, 49, morador do Saracá, passou mal e teve que ser levado às pressas a Manaus —em linha reta, a cerca de 60 km de distância. No atual momento de seca, esse trajeto pode levar mais de uma hora e meia, dependendo do tipo de embarcação.

Há ainda um complicador: a partir do Saracá, para chegar ao barco no trecho navegável do rio Negro, é preciso caminhar um trecho, atravessar o pequeno lago citado anteriormente e ainda andar outro considerável pedaço de terra que antes era rio. Esse esforço até o rio, de fato, passa de meia hora.

Solo rachado e quebradiço
Solo rachado e quebradiço em frente à comunidade Santa Helena do Inglês, no município de Iranduba (AM), em área costumeiramente ocupada pelas águas do rio Negro - Phillippe Watanabe/Folhapress

Fora o susto com Sebastião, a comunidade tem convivido com a dificuldade de chegada de remédio para controlar o diabetes de um dos moradores.

E, além da preocupação com emergências médicas, há o incômodo com possíveis coceiras provocadas por esponjas de água doce localmente conhecidas como cauxi (Metania reticulata).

Por ali, não é novidade a coceira em quem encosta no cauxi —tanto que já é avisado a pessoas que se hospedam na área. Mas, segundo os comunitários, a seca trouxe pó de cauxi para diversos lugares no Saracá, aumentando a chance da situação incômoda.

Centenas de cancelamentos

A seca levou ao cancelamento de, pelo menos, 310 reservas entre hospedagem e restaurantes em cinco comunidades no baixo rio Negro, de acordo com levantamento feito pela Aliança Amazônia Clima, liderada pela FAS. Essas desistências somam um prejuízo de mais de R$ 190 mil apenas em outubro.

A aliança busca obter doações para auxiliar as populações, especialmente as isoladas, afetadas pela seca histórica na amazônia. O projeto já mapeou cerca de 400 comunidades, aldeias e/ou bairros periféricos que foram afetados pela estiagem.

Mas o dinheiro que a seca impediu de chegar vai além da questão das hospedagens. No Saracá, por exemplo, há atividades de artesanato e de pesca —que, mesmo fora do período mais lucrativo, ainda poderiam render algum dinheiro, além do alimento, logicamente.

Desde setembro, a pesca decaiu. "Nessa seca, parou tudo", diz Sebastião, que é presidente da Associação de Moradores da RDS Rio Negro e, depois de passar mal, conseguiu ser atendido e voltou para a comunidade. "Para tudo e aí fica difícil. O período que não está dando peixe, [normalmente] as meninas estão no artesanato, recebendo cliente."

Pedrina é uma das responsáveis pelo artesanato na comunidade, parte do grupo de artesãs chamado Formiguinhas do Saracá. O dinheiro arrecado nas vendas é dividido pelo grupo. A matéria-prima para a confecção, como sementes de açaí e morototó, é comprada na própria comunidade, também fazendo circular renda. Sem vendas, sem circulação de dinheiro local.

A movimentação de turistas vindos de comunidades ao redor também costumava trazer oportunidades de negócios —como em um dia em que influencers hospedados na comunidade Tumbira (um pouco mais distante, a quase 9 km, em linha reta, do Saracá) compraram R$ 3.000 em artesanato. Normalmente, os ganhos mensais do Formiguinhas chegavam a R$ 5.000, segundo Pedrina.

Na seca, porém, a ligação relativamente simples, de barco, entre as comunidades, acabou. O percurso a pé, superior a meia hora, tem muito sol e poucas sombras entre as vizinhas Saracá e Santa Helena do Inglês, distantes menos de 2 km em linha reta.

Ambas as comunidades, por sinal, receberam, através da FAS, recursos do Fundo Amazônia e escolheram como destinar a verba para o desenvolvimento da economia local.

O igarapé que dava acesso a Santa Helena virou um pequeno córrego de água em meio ao terreno seco, que, em determinados pontos, chega a ser quebradiço ao ser pisado.

Apesar da paralisação de atividades causada pela seca, as duas comunidades não representam as situações mais críticas da região. Ambas possuem água limpa derivada de poços e energia elétrica —o que, contudo, traz contas que podem se acumular sem o dinheiro circulando.

Outras comunidades isoladas carecem desses elementos. Em algumas, inclusive próximas, há problemas no abastecimento de água e peixes mortos se acumulam nas poças que restam.

Demétrio Vidal Mendonça, 70, o mais velho em Santa Helena do Inglês, e pai de Pedrina e Sebastião, já viu algumas secas severas no local, mas sente que essa foi a pior.

O que resta é esperar, dizem os moradores das comunidades, que têm recebido cestas básicas.

"Nem tudo é prejuízo. É uma tragédia, mas serve para a gente fazer uma reflexão", diz Sebastião. "Eu estava até brincando com a Pedrina: neste período, vamos organizar o que der para organizar, e o que não der, quando a água voltar, a gente começar a trabalhar."

O jornalista viajou a convite da FAS (Fundação Amazônia Sustentável).

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