Moradores das periferias de Belém sofrem com sensação térmica elevada por 'ilhas' de calor

Bairros têm falta de arborização e concentração de asfalto; Inmet aponta variação de até 1,1°C nas últimas três décadas na cidade-sede da COP30

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Toni Cavalcante
Belém

O ponteiro do relógio ainda nem bateu 10h no Conjunto Sevilha, bairro do Parque Verde, na RMB (Região Metropolitana de Belém), e a temperatura já ultrapassa a casa dos 30°C. Antes do meio-dia, a professora Carolina Vilar, 27, tenta ministrar o maior número possível de aulas de yoga online.

Quando as 12h chegam, ela vai tomar banho, volta para a sala, liga dois ventiladores e se deita nos azulejos do chão do seu apartamento, localizado no bloco B do Sevilha. O rito não faz parte dos seus ensinamentos de yoga, mas, sim, de uma estratégia pensada por ela para se livrar de um inimigo invisível, mas muito incômodo para o seu trabalho em casa: o calor excessivo.

Mulher jovem no meio de uma rua com cartazes
Carolina Vilar, 27, é professora de yoga e mora no Conjunto Sevilha, bairro do Parque Verde, na Região Metropolitana de Belém); ela sofre com o calor para dar aulas em casa - Victor Peixe

"Eu tomo um banho atrás do outro. Na época do verão amazônico, chego a tomar mais de oito banhos por dia", conta ela, referindo-se ao período de junho e setembro, quando a região de Belém vive a época mais quente do ano e de menos chuvas. Normalmente, nesses meses, os termômetros na capital paraense têm média de 33°C, com picos de até 36°C.

Essa média, no entanto, vem aumentando nos últimos anos na cidade e preocupando os moradores, em especial os de bairros periféricos ou mais afastados do centro, como Vilar.

"A sensação térmica aqui é de uma panela de pressão. É mais de 40°C com toda certeza", acredita Vilar.

Segundo dados do Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), a temperatura média em Belém aumentou em 0,9°C, com variação de até 1,1°C, de 1991 a 2020.

Os estudos do Inmet já chamam atenção para as sensações térmicas em diferentes pontos da cidade de Belém. "Locais onde o crescimento da cidade foi desordenado, com impermeabilização por cobertura maior de asfalto e concreto, construção de prédios e pouca cobertura vegetal são mais quentes", afirma José Raimundo, coordenador do Inmet-PA.

mulher deitada em piso que parece ser de madeira com uma mão cobrindo os olhos
Carolina Vilar, professora de yoga, costuma deitar no piso de casa para se refrescar - Victor Peixe

Mau planejamento

Atualmente, o Sevilha é um conjunto estabelecido na cidade. Tem portaria bem sinalizada, CEP e cerca de 10 mil habitantes. Mas, há 20 anos, era isolado de Belém, marginalizado pelos bairros mais centrais. Sua implantação foi feita de maneira improvisada, com invasões de espaços de mata para construção de casas, sem planejamento urbano e ambiental, e praticamente sem o apoio do poder público.

Nas redondezas, onde um dia já houve árvores, nasceram outros conjuntos, muitos deles ocupados aos mesmos moldes do Sevilha.

Localizada na avenida Augusto Montenegro, uma das mais importantes da capital, devido os seus 13 km de extensão que passam por oito bairros, a área vem passando por uma revitalização na última década.

Já chamada de "rodovia da morte" no passado, por conta do alto número de acidentes, a Augusto Montenegro é por onde, hoje, a cidade de Belém mais tem se expandido em moradias e pontos comerciais.

Uma das principais marcas desta nova fase é a construção do Sistema Bus Rapid Transit (Sistema de Ônibus Rápido ou BRT). O projeto, de 20 km de extensão, tem o objetivo de interligar Belém e vários distritos próximos, como Marituba e Icoaraci. Contudo, devido a diversas irregularidades desde o seu início, as obras já duram mais de 11 anos.

Com isso, praticamente toda área verde da região se transformou em um canteiro de obras. O coordenador do Inmet confirma que o entorno da avenida está entre os lugares com maior aumento de temperatura da última década em Belém, devido à retirada das árvores na construção do BRT.

"Há 12 anos, às 6h da manhã era bem fresco aqui. Isso acontecia antes de retirarem a arborização. Agora, às 6h, o sol já está invadindo o apartamento e começa a ficar muito quente desde muito cedo. Se tu não tiveres um ventilador, já acordas passando mal de calor", diz Vilar.

Mulher caminha com sombrinha em rua de casas de alvenaria sem reboco
Carolina Vilar usa sombrinha para se proteger do sol - Victor Peixe

Pesquisadores corroboram com a observação sobre o calor excessivo nesses locais. Para a Rede Jandyras, coletivo de mulheres articuladoras ambientais e por justiça climática, a ausência de um plano diretor da cidade possibilitou que o crescimento não fosse planejado para manter a qualidade ambiental.

Nesse processo, grandes áreas permeáveis foram perdidas e deram lugar à construção de vias com asfalto, formando as chamadas ilhas de calor urbanas.

"As regiões da Augusto Montenegro e Ananindeua integram uma região chamada ‘nova Belém’. Desde a década de 90, essa região passou por grandes alterações urbanas impulsionadas pelo mercado imobiliário. Esses fatores, somados às mudanças climáticas, agravaram a ilha de calor urbana, que faz com que determinadas áreas da cidade apresentem maior temperatura que outras", explica Waleska Queiroz, integrante da Rede Jandyras.

Em agosto deste ano, o Laboratório de Tecnologia das Construções (Labtec-UFPA) publicou uma análise detalhada da evolução do clima em Belém. Segundo os resultados, existe uma clara evidência entre a densidade populacional e o aumento das temperaturas na cidade.

Impacto na economia e na saúde

No Distrito Industrial, bairro periférico da cidade de Ananindeua, também na RMB, a biqueira para banho, feita de plástico no quintal, era o local da casa favorito da empregada doméstica Márcia Maria Moraes, 59, pois lhe servia para molhar o rosto, pescoço e peito, numa tentativa de se livrar do calor no dia a dia.

Mas, morando no Distrito há mais de 20 anos e chegando à terceira idade, Moraes passou a sentir as consequências do calor. Tem dores de cabeça, problemas de pressão e de garganta com frequência. Diante desses desconfortos, precisou comprar um ar-condicionado para seu quarto.

"Nossa conta de energia ficou muito mais cara, em torno de R$ 500 por mês. E olha que ligamos o ar apenas para dormir", conta.

Segundo estudos do grupo Direitos Humanos da Amazônia, da UFPA (Universidade Federal do Pará), a região amazônica é onde se paga a energia mais cara do país. No Pará, são cobrados cerca de R$ 0,88 pelo quilowatt, e, em São Paulo, por exemplo, são aproximadamente R$ 0,66.

"Considerando que o estado do Pará paga a tarifa mais alta de energia, o impacto econômico e social nas famílias de baixa renda é um fator que agrava as desigualdades", expõe Queiroz.

Dividindo uma casa de dois cômodos com o marido, filha, genro, dois netos crianças e um filho adolescente solteiro, Moraes diz não se arrepender da aquisição. "Não sei se tem relação com esse aumento de calor, mas minha cabeça passou a doer com mais frequência, principalmente nos horários de pico de calor. Então o ar-condicionado me ajudou nesse sentido", afirma.

Da mesma forma, Vilar, no Sevilha, acredita que o calor excessivo contribuiu para o agravamento do seu TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade).

"Por natureza, eu já não consigo me concentrar muito bem. Quando tá muito calor, fico muito inquieta, muito mesmo", diz. "Até mesmo quando tu desces para tentar se refrescar, tu não consegues porque o sol tá batendo no asfalto e refletindo em ti. Então como tu te refrescas nessa circunstância?"

Especialistas da área da saúde já correlacionam o excesso de calor ao aumento de doenças como desnutrição e também a problemas oftalmológicos, respiratórios, pulmonares e relacionados à pele. Além disso, os órgãos de segurança avisam que é nesse período que aumentam os riscos de acidentes domésticos, com ar-condicionado, ventiladores e extensões.

"Há anos o tema 'mudanças climáticas' já é de interesse do campo da saúde, pois já é clara a necessidade de cuidados preventivos e terapêuticos nas populações expostas ao calor excessivo. Sem dúvida, os mais afetados acabam sendo os mais vulneráveis, bem como crianças e idosos", afirma a médica nutricionista Josiana Kely Rodrigues, que possui mestrado em desenvolvimento e meio ambiente urbano.

"O aumento da temperatura do ar tem elevadas concentrações de poluentes, gerando uma maior incidência de dores de cabeça, alergias, infecções respiratórias e circulatória", completa

COP30

Belém, escolhida para receber a COP30, conferência do clima da ONU em novembro de 2025, precisa lidar com a urgência em desenvolver estratégias de mitigação do calor na região para, na opinião das pesquisadoras da Rede Jandyra, ser considera uma sede com exemplos de sustentabilidade e resiliência.

"O poder público precisa desenvolver um plano abrangente que envolva o aumento da vegetação urbana, soluções baseadas na natureza, redução de emissões de gases de efeito estufa e infraestrutura sustentável", afirma Waleska Queiroz.

Enquanto esse momento não chega, Vilar assiste, na sala da sua casa, tentando se refrescar, aos vídeos de Hyago Palheta, um dos influencers paraenses mais conhecidos dos últimos tempos —famoso pelo bordão "É um sol pra cada fresco"—, desejando dias menos quentes num futuro próximo, onde o sol sirva apenas como parte dos roteiros de humor para diverti-la.


Algumas medidas que Belém precisa tomar contra o calor, segundo especialistas

  • Aumento da arborização urbana e a criação de novas áreas verdes; medida é eficaz não apenas para proporcionar sombreamento e redução das temperaturas locais, mas também para melhorar a qualidade do ar e promover o bem-estar da população
  • Reduzir as emissões de CO2, incentivando uso de transporte público e outros modos de locomoção de baixa emissão, como bicicleta e o transporte fluvial
  • Adoção de pavimentos permeáveis, para melhor a absorção da chuva, e pavimentação de baixo albedo (reflexão da luz do sol), para mitigar o efeito das ilhas de calor urbanas

Esta reportagem é parte do Programa de Microbolsas Jornalismo Tapajós, parceria do Laboratório de Comunicação Amazônia, do Projeto Saúde e Alegria e da Folha para estimular a produção jornalística de jovens profissionais da Amazônia.

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