Mudanças climáticas ainda não são pauta em igrejas evangélicas

Lideranças não veem incentivo para abraçar o tema, encarado como ideologia de esquerda, diz pesquisador

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São Paulo

Não é que pastores ignorem estragos de contornos apocalípticos no meio ambiente. Líderes expressivos, como Silas Malafaia e Edir Macedo, já foram categóricos: há, sim, uma mudança climática em andamento, e não dá para isentar o homem pelas catástrofes em série que vemos por aí.

O problema é que levar essa pauta para dentro das igrejas evangélicas pode ser contraproducente, minando alianças vistas como mais pragmáticas —com o agronegócio, por exemplo. Daí um engajamento ambiental entre fiéis que deixa a desejar, dizem à Folha lideranças do segmento.

Uma visão corroborada pelo sociólogo Renan William dos Santos, autor de uma tese de doutorado na USP sobre orientações cristãs para a conduta ecológica.

Muitos pastores, diz, "não deixam de incorporar institucionalmente a agenda ambiental porque são negacionistas, mas porque não vislumbram incentivos relevantes para abraçar a pauta de forma robusta e sistemática".

Floresta vista de cima
Fumaça de incêndio na amazônia, em Manaquiri (AM) - Michael Dantas - 6.set.2023/AFP

"Mesmo organizações transnacionais como A Rocha, com expertise de produção de materiais ecológicos voltados ao público evangélico, não conseguiram prosperar no Brasil", afirma Santos.

Malafaia já pregou que "tornados, tsunamis, tempestades e deslizamentos" são só uma amostra do que vem adiante. E não adianta colocá-los na conta do espiritual. "Por que tudo tem de ser considerado castigo divino ou ação diabólica?"

"É claro que Deus é soberano e tem o controle de todas as coisas, mas isso não significa que é Ele quem produz os desastres, a fim de castigar a humanidade, como fez enviando o dilúvio [da arca de Noé]", disse.

"Poluição de rios e mares, desmatamento, construções irregulares em encostas, lixos jogados na mata e aumento da emissão dos gases gerando o efeito estufa" são "ações provocadas pelo homem, os principais agentes de tanta tristeza".

Mário de Oliveira, à frente da Igreja Quadrangular, discursou no Congresso em 2009, quando era deputado, contra a displicência com recursos naturais. "Ora, o único desenvolvimento que interessa é o sustentável e não o tipo que tivemos até aqui, que deixa atrás de si desertos e poluição. Para os que podem pagar, ainda existem bairros agradáveis e água pura. Mas, para os mais pobres, é cada vez mais difícil o acesso ao verde."

Augustus Nicodemus Lopes, reverendo presbiteriano, já cobrou mais compromisso do homem, que não seria "o soberano senhor, dono e déspota, mas o responsável diante de Deus [...] pela preservação dos demais seres vivos".

Pitacos como esses, contudo, são esparsos e não chegam a dominar nacos significativos do discurso religioso padrão.

Ainda que a base evangélica não seja negacionista sobre o perigo que o planeta sofre, como aponta pesquisa Datafolha feita em dezembro de 2023. Segundo 78% desse estrato populacional, atividades humanas contribuem para o aquecimento global, e para 2 em cada 3 evangélicos eventos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes. São proporções equivalentes à média geral.

Para o apóstolo Cesar Augusto, da Igreja Fonte da Vida, a agenda verde tem DNA conservador, porque "nós, evangélicos, nos vemos como mordomos da natureza criada por Deus". Mas a contaminação ideológica seria um repelente de fiéis. Já que o assunto é tão caro ao que define como "progressistas radicais", melhor deixar para lá. "Muitos evangélicos se afastaram [do tema]."

Retrato de César Augusto
O apóstolo César Augusto, fundador da Igreja Fonte da Vida, em São Paulo - Zanone Fraissat - 4.out.2019/Folhapress

Por isso você não vê um grande pastor condenando garimpos, desmatamento e outras pautas que, por sinal, encontraram guarida na Presidência de Jair Bolsonaro (PL), à qual a maioria da liderança de envergadura nacional se alinhou.

As digitais ideológicas ficam mais patentes nesta fala de Augusto sobre uma das ambientalistas brasileiras mais reconhecidas mundo afora: "O governo tem uma retórica de resguardar a natureza. Apesar disso, a ministra Marina Silva, dizendo-se evangélica, é na prática muito mais defensora das ideologias de esquerda do que da conservação do meio ambiente".

Estevam Hernandes, líder da Igreja Renascer em Cristo e idealizador da Marcha para Jesus, reconhece que as igrejas poderiam atuar mais nesse front. "Não existe uma preocupação. Falamos sobre o tema, mas não com a ênfase que deveríamos."

Também para ele o envolvimento progressista pode espantar evangélicos. É comum ouvir que ambientalismo é papo de "ongueiro", referência pejorativa a ONGs da área, tidas como puro suco de esquerda.

"Infelizmente, a questão da pauta ambiental se tornou muito uma retórica", diz Hernandes, que já compôs uma música, "Terra", sobre o "homem brutal" que, num escárnio com "Teu Supremo Criador", fere o planeta "com golpes mortais".

O Vaticano foi mais ágil em virar a chavinha. O papa Francisco não inventou a roda ambientalista na Igreja Católica, mas ajudou a girá-la mais rápido.

Papa acena de uma janela aberta
Papa Francisco acena na praça de São Pedro, no Vaticano - Alberto Pizzoli - 15.out.2023/AFP

João Paulo 2° já havia declarado, em 1990, que a tribulação ecológica reflete uma "profunda crise moral". Foi Francisco, contudo, quem aderiu com mais empolgação a essa agenda.

Em 2019, marcou o Sínodo da Amazônia, uma reunião com quase duas centenas de bispos para discutir questões ligadas ao meio ambiente. Fora as reiteradas falas sobre o assunto, planejou participar, em 2023, da COP28, conferência do clima da ONU, nos Emirados Árabes, mas a viagem foi cancelada por questões de saúde.

Não que o meio como um todo seja ambientalista desde criancinha. "O negacionismo climático no país tem sido historicamente influenciado por atores católicos, muito mais do que por evangélicos", diz Renan dos Santos. "Basta lembrar que, já durante a Eco-92, o grupo que organizou uma coalizão internacional para contestar as pautas ambientais foi a TFP."

TFP é Tradição, Família e Propriedade, organização civil que navega nos mares ultraconservadores do catolicismo.

"Já a tal da expressão ‘psicose ambientalista’, várias vezes citada por Bolsonaro, veio do ‘príncipe’ Bertrand", afirma o pesquisador. Trineto de Pedro 2º, Bertrand de Orleans e Bragança é o autor de "Psicose Ambientalista - Os Bastidores do Ecoterrorismo para Implantar uma Religião Ecológica, Igualitária e Anticristã" e ligado ao IPCO (Instituto Plinio Corrêa de Oliveira), outra aba da direita católica nacional.

Presidente da Repam (Rede Eclesial Panamazônica) e bispo de Roraima, Dom Evaristo Spengler diz que a corrente majoritária, na Igreja Católica, é olhar para a natureza com "um presente de Deus a ser cuidado".

"Todos sentimos os efeitos das catástrofes ambientais que já não são tão naturais. Por isso é fundamental o diálogo com a ciência."

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