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O que Tina, criança neandertal com síndrome de Down, nos ensina sobre a evolução humana

Equipe de pesquisadores descobriu evidências que sugerem que um neandertal com síndrome de Down sobreviveu até os 6 anos de idade, graças aos cuidados de sua comunidade

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Cristina J. Orgaz
BBC News Mundo

O que torna os seres humanos anatomicamente modernos, únicos na história da evolução?

Viver em sociedade e cuidar dos outros foi provavelmente o que permitiu à nossa espécie não só sobreviver, mas também evoluir ao longo de milhares de milhões de anos.

Pelo menos esta é a teoria de muitos cientistas, que foi recentemente reforçada pelos resultados de um estudo realizado na Espanha, focado em um pequeno osso com características incomuns.

Valentín Villaverde era o diretor do sítio arqueológico Cova Negra quando o fóssil foi descoberto - A. EIXEA

No sítio arqueológico de Cova Negra, perto da cidade espanhola de Valência, uma equipe de paleontólogos descobriu em 1989 um fragmento ósseo de 5 centímetros proveniente do ouvido interno de um neandertal de 6 anos.

Embora o osso não tenha permitido determinar se pertencia a um menino ou a uma menina, a equipe que o analisou decidiu chamar o indivíduo de Tina.

A descoberta de parte do canal auditivo de um neandertal é algo incomum.

Normalmente, os restos mortais costumam ser partes do corpo, como crânio, dentes ou ossos das extremidades. E embora, na época, houvesse mais interesse arqueológico em outros restos mortais da escavação, os pesquisadores determinaram que, na verdade, se tratava de uma peça muito valiosa.

O osso apresentava um espessamento anômalo - Mercedes Conde Valverde/Universidade de Alcalá

Os neandertais povoaram a Europa durante centenas de milhares de anos, até serem extintos há 40 mil anos. Eles são um dos nossos parentes mais próximos conhecidos. O Homo sapiens (os seres humanos atuais) e os neandertais (Homo neanderthalensis) são classificados como espécies distintas de hominídeos, que coexistiram ao longo do tempo e são provenientes de um ancestral comum.

Estima-se que o fóssil datava do Pleistoceno Superior e tinha, portanto, entre 120 mil e 40 mil anos.

"A verdadeira surpresa foi com a tomografia, que revelou que esse neandertal tinha lesões de nascença que correspondem à síndrome de Down, e que também teriam gerado deficiências de saúde significativas ao longo de sua vida", disse à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, Valentín Villaverde Bonilla, professor emérito do departamento de pré-história, arqueologia e história antiga da Universidade de Valência, que liderou a equipe de escavação em Cova Negra.

Ameaças à sobrevivência

Villaverde explica que os danos detectados no fóssil indicavam que Tina sofria de otites contínuas, surdez, problemas de equilíbrio e provavelmente dificuldade de mobilidade.

"Ela tinha dificuldades significativas que ameaçavam sua sobrevivência. Obstáculos que seria impossível superar sozinha", acrescenta.

A síndrome de Down é uma alteração genética na qual a pessoa possui um cromossomo extra, que pode causar diversos graus de deficiência intelectual, além de problemas cardíacos, digestivos e em outros órgãos.

Mesmo assim, Tina chegou aos 6 anos de idade, o que excede em muito a expectativa de vida normal das crianças com síndrome de Down na população pré-histórica.

Para efeito de comparação, no início do século 20, entre as décadas de 1920 e 1940, a expectativa de vida de uma criança com síndrome de Down ficava entre 9 e 12 anos.

O osso mede 5 centímetros - Valentín Villaverde Bonilla/Universidade de Valência

A explicação encontrada pela equipe da Universidade de Alcalá, na Espanha, que recebeu o pequeno osso de Tina para análise, é de que os cuidados necessários à sua sobrevivência ao longo de vários anos provavelmente iam além da capacidade da mãe - e teriam exigido a ajuda de outros membros do grupo social.

As conclusões do estudo foram publicadas em julho pela renomada revista acadêmica Science Advances. A principal questão que a ciência levanta é se este cuidado foi altruísta - um comportamento de grande valor adaptativo - ou motivado por interesses.

Afinal de contas, os neandertais eram grupos de caçadores-coletores que se deslocavam com frequência por territórios muito extensos. "Se você não desse uma atenção especial a esta criança, ela não teria sobrevivido até os seis anos", argumenta Villaverde.

Implicações comportamentais

A atitude dos neandertais de cuidar de pessoas com deficiência é conhecida há muito tempo, mas existe um debate sobre as implicações deste comportamento.

Embora "alguns autores acreditem que o cuidado se dava entre indivíduos capazes de retribuir o favor, outros sustentam que o cuidado é resultado de um sentimento de compaixão relacionado a outras condutas pró-sociais altamente adaptativas", afirmam os autores do estudo.

As escavações em Cova Negra foram fundamentais para a compreensão do modo de vida dos neandertais na região ibérica - Valentín Villaverde Bonilla/Universidade de Valência

Mercedes Conde Valverde, pesquisadora da área de otoacústica evolutiva do HM Hospitales e da Universidade de Alcalá, conversou com a BBC News Mundo de Atapuerca, na Espanha. Ela liderou a equipe de pesquisadores espanhóis encarregados de analisar o pequeno osso de Tina.

"Existem restos mortais de outros indivíduos neandertais com patologias que provavelmente necessitaram da ajuda do grupo. Mas todos eram adultos, e foram detectadas patologias com as quais não nasceram - mas, sim, foram adquiridas ao longo da vida: ferimentos, doenças, ossos quebrados e outros traumatismos", afirma.

"O debate sobre este comportamento é se, quando você é adulto, receber a ajuda do grupo é um comportamento altruísta - te ajudo porque tenho vontade de ajudar -, ou é um comportamento de ajuda recíproca - te ajudo porque no passado você me ajudou, ou porque no futuro você vai me ajudar."

Tão altruístas quanto nós

O caso de Tina é excepcional porque ela é uma criança, nasceu com esses problemas e ainda sobreviveu pelo menos seis anos.

"Isso significa que eles tiveram que ajudá-la e cuidar muito dela, mas como era uma criança, o mais provável é que não esperassem que retribuísse o favor", avalia a pesquisadora.

O estudo de crianças com patologias graves é particularmente interessante, uma vez que as crianças têm uma capacidade muito limitada de retribuir os cuidados. O que isso diz sobre a evolução da nossa espécie é que os neandertais tinham um comportamento altruísta ou tão altruísta quanto nós.

Os neandertais eram uma espécie diferente da nossa, mas semelhantes em muitos aspectos - BBVC Studios/Jamie Simonds

Existe um caso conhecido de um chimpanzé com síndrome de Down que sobreviveu até os 23 meses graças aos cuidados recebidos da mãe, que contava com a ajuda da filha mais velha.

Quando a filha deixou de ajudar a mãe para cuidar da sua própria prole, a mãe não conseguiu prestar os cuidados necessários, e o filhote morreu.

Se os neandertais eram compassivos, e nós também somos, mas pertencemos a duas linhas evolutivas diferentes - "isso quer dizer que pelo menos o ancestral comum certamente já tinha (compaixão), e é por isso que as duas linhagens herdaram", explica Conde Valverde.

A espécie humana que deu origem aos neandertais e aos Homo Sapiens viveu há um milhão de anos.

"O que propomos é que outros membros do grupo social podiam ajudar a menina diretamente ou podiam ajudar a mãe, liberando-a de tarefas que ela teria que fazer para poder cuidar de Tina. Os neandertais eram uma espécie muito semelhante à nossa", acrescenta.

Duas perspectivas diferentes do modelo 3D do fóssil original - Mercedes Conde Valverde/ Universidade de Alcalá

Ou seja, o cuidado entre os neandertais estaria relacionado a um contexto social mais amplo e complexo, de grande valor adaptativo - e o estudo de crianças oferece a possibilidade de provar se o cuidado está diretamente relacionado a uma estratégia social tão complexa quanto a parentalidade colaborativa.

"Por um lado, os mais críticos sustentam que não é possível inferir com rigor a existência de cuidados a partir de meras evidências paleopatológicas, e que as inferências feitas se baseiam em suposições injustificadas. No entanto, nos últimos anos, tem ganhado força a ideia de que as evidências paleopatológicas são uma fonte objetiva de informação sobre a existência de cuidados na pré-história", diz o estudo.

Outro aspecto especialmente interessante no campo da bioarqueologia é determinar por que as pessoas dedicavam parte do seu tempo e esforço ao cuidado de um membro do seu grupo com deficiência temporária ou permanente.

Ángeles Sánchez, Julia Diez, Mercedes Conde, Amara Quirós e José Ignacio Martínez Mendizábal fazem parte da equipe que analisou o osso - Universidade de Alcalá

Esta descoberta "me parece bonita porque dá visibilidade ao grupo de pessoas com síndrome de Down. Todos nós já estamos na evolução humana, todos temos uma referência, e todos nós podemos representar, sempre estivemos, sempre viajamos juntos", afirma Ignacio Martínez Mendizabal, codiretor da área de pesquisa otoacústica evolutiva e paleontoantropologia da Universidade de Alcalá.

"E aí você tem uma questão mais técnica, mais profunda, cientificamente, um problema de biologia evolutiva, que é a questão de quando e como surge esse comportamento tão humano, porque é exclusivamente humano, de cuidar de pessoas vulneráveis dentro das comunidades."

"Acredito, de verdade, que não há hoje outra equipe no mundo que teria sido capaz de, com este fóssil, perceber o que ele tinha e, sobretudo, realizar toda a pesquisa e conseguir publicá-la em uma revista como a Science Advances", conclui Mendizabal.

Este texto foi publicado originalmente aqui.

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