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Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

A vitória das emas

País resistiu à ocupação predatória do último locatário

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O sorriso da ema ao ver o caminhão da transportadora Muda Brasília gerou um de muitos memes e a lembrança de que o Alvorada não tem dono. Tem inquilinos. A cada quatro anos o contrato de aluguel expira. Uns o renovam, outros são despejados.

As emas, moradoras originais, tudo assistem. São as guardiãs do palácio desde a inauguração. Vivem pouco, cada uma em média pouco mais de dois mandatos, mas exercem serviço dificílimo: exterminar animais peçonhentos que rondam a moradia do poder federal.

Bolsonaro com emas nos jardins do Alvorada - Pedro Ladeira-13.jul.20/Folhapress

Trabalho indispensável no Planalto Central, conhecido serpentário. Mas insuficientemente apreciado e até dispensado por uma primeira-dama. A desgostosa teve que chamar de volta as enxotadas. Foi na ditadura, e no Alvorada não faltavam cobras criadas.

As retornadas conviveram bem com os civis, sem distinguir petistas ou peessedebistas, mas passaram à vigília democrática quando um autoritário chegou à residência oficial. Bicaram o malquisto em dia propício, um 13. O presidente, ao seu estilo, exorcizou as emas com uma caixa de cloroquina. A antipatia mútua prosperou. As emas repetiram o gesto. O herói da vez ficou se chamando "Bicão". No seu (não no das emas, que vivem soltas) cercadinho, Bolsonaro reclamou de sustentá-las: "tem umas 50 emas aqui. Você quer que eu pague do meu salário a ração pra ema?"

Além do almoço das aves, o presidente se negou a gastar com saúde, educação e tudo o mais que fosse relevante para o país. O relatório da equipe de transição documenta terra arrasada. Em todos os setores, houve desorganização, paralisia ou ambos. Não se sabe nada de nada, da validade de vacinas ao número de matrículas. Há cargos não preenchidos, órgãos parados, estatísticas incompletas. Bolsonaro implementou o liberalismo selvagem de seu ministro, destruiu a burocracia de Estado pelo método mais simples, a inépcia.

O novo governo não apenas governará em situação adversa, precisará reconstruir os meios de governar. A estrutura burocrática sobrevivente vai ter que pegar no tranco. Eis aí uma obra de Bolsonaro, que, ao contrário de seus retratos mal pintados, não coube no caminhão de mudança. As emas e todos os brasileiros terão que conviver com ela.

O presidente tampouco levará embora a violência política que suscitou. Deixou que seus crentes, febris e armados, decidam o que fazer com ela. Ficaram órfãos de um presidente que jamais presidiu, sempre em campanha. Agora que seus liderados reclamam um norte, desapareceu. Deixa vago o posto fácil de líder da oposição pelo lado direito. Mas, ao se negar a transmitir a faixa, quebrando o rito de continuidade da República, emula o último ditador. E segue em seu longo flerte com um golpe.

Cercado por opinião nacional e internacional contrária, ações de STF, PF e de novo governo, o golpismo, contudo, é aposta arriscada. Pode dar prejuízo financeiro e cana brava. Por isso, o desembarque é notório. O posto Ipiranga se mandou. Uma das emas contribuiu. Atacou o ministro, em defesa dos filhotes. Assim representou todas as mães das tantas famílias que decisões de Guedes penalizaram.

As emas devem estar jubilosas. É pena que Lula, bom conviva delas nos seus oito anos na casa, não as leve para subir a rampa. A cachorrinha Resistência representará os petistas fiéis na hora mais amarga. Já a ema Bicão representaria não um partido, mas o Estado que resistiu à ocupação predatória do último locatário.

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