Siga a folha

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Antissistema é a vovozinha

Ruim é quando normalizam na disputa o dedo no olho e o chute no saco

Assinantes podem enviar 7 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Vivemos numa época polarizada. (Taí, provavelmente, o último ponto de concordância entre a esquerda e a direita). O fantasma do dissenso nos assombra por todo lado. Na fila da farmácia, na reunião de condomínio, no subgrupo de zap "Comissão compras pro Réveillon" —já vi açúcar refinado X açúcar demerara acabar com o fim de ano de mais de uma turma.

Existe, contudo, um fenômeno anterior à polarização, que não sei como nomear. Incivilidade? Intolerância? Barbárie? Um clima de guerra de todos contra todos que antecede qualquer filiação ideológica e sem o qual as divergências não teriam tamanha causticidade. Afinal, como muita gente já falou por aí, a polarização não é necessariamente ruim. Passamos duas décadas, relativamente bem, sob o antagonismo entre PT e PSDB. Ruim é quando normalizam na disputa o dedo no olho e o chute no saco.

Até poucos anos atrás eu levava meus filhos pra escola num carrinho duplo. Os dois nasceram com um ano e meio de diferença (sensação térmica de duas semanas) e cabiam ali, feito gêmeos. Não passou um dia em que eu tentasse atravessar a rua e os carros, ao verem os bebês despontando na faixa de pedestres, não só não parassem, mas acelerassem. Veja bem. A pessoa vê dois nenéns, dois seres humanos de 15 quilos cada indo pra escola de chupeta e naninha e joga contra eles uma máquina de uma tonelada. Isso não é de esquerda nem de direita. É grotesco.

Estou agora em Ribeirão Preto, a trabalho. Quando o avião pousou, a aeromoça falou que o desembarque seria escalonado. Primeiro, poltronas 1 a 5. Depois 5 a 10 e assim por diante. Mal acabou de explicar e já tava todo mundo de pé, se aglomerando na frente. Quem não conseguiu levantar só saiu de suas poltronas depois de todos os espertos descerem pela escadinha. Dane-se a senhora de 87 anos da poltrona 09 D. O cadeirante da 1 A. A grávida da 17 B que teve que esperar todos os passageiros descerem pra pegar a mala no compartimento um metro atrás.

O exemplo pode soar elitista. Sem problemas. Trago-o aqui não pra lamentar como sofro na pele as mazelas do país, mas para mostrar que a incivilidade não é reservada ao outro lado da trincheira. Não havia ali no avião qualquer disputa ideológica, era só a lógica hobbesiana de que o mais forte (ou mais rápido) deve levar a melhor.

O problema do Pablo Marçal não é ele ser de direita. (Até porque, sem proposta alguma, fica difícil avaliar). O problema, ou melhor, o que deveria ser um problema, principalmente para os que se identificam como conservadores, como cristãos, como defensores da moral e dos bons costumes, é ele ser contra o bom dia, o boa tarde e o boa noite, contra o por favor e o obrigado, contra o sinal verde, o amarelo e o vermelho. É dedo no olho, chute no saco.

A imprensa o tem descrito como "antissistema". Talvez na Suécia, em que o sistema garante educação, saúde, bem-estar, bom dia, boa tarde e boa noite a todo cidadão, ele fosse "disruptivo". No Brasil, onde a barbárie é institucionalizada, motoristas avançam contra bebês, matam o motoboy que quebrou o espelhinho e o PCC constrói um império, Marçal é o maior representante do sistema.

Não há radicalismo em ser ogro em tempos de ogros, em ser bárbaro na barbárie. Marçal é o candidato do establishment. Precisamos de um(a) radical, um(a) revolucionário(a) que seja capaz de ouvir, pensar no bem comum, parar na faixa, dizer por favor e obrigado, respeitar a lei e fazer com que a lei seja respeitada. Temo, contudo, que essa pessoa seja vista como extremista demais para tempos tão conservadores.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas