Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antissistema é a vovozinha

Ruim é quando normalizam na disputa o dedo no olho e o chute no saco

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Vivemos numa época polarizada. (Taí, provavelmente, o último ponto de concordância entre a esquerda e a direita). O fantasma do dissenso nos assombra por todo lado. Na fila da farmácia, na reunião de condomínio, no subgrupo de zap "Comissão compras pro Réveillon" —já vi açúcar refinado X açúcar demerara acabar com o fim de ano de mais de uma turma.

Existe, contudo, um fenômeno anterior à polarização, que não sei como nomear. Incivilidade? Intolerância? Barbárie? Um clima de guerra de todos contra todos que antecede qualquer filiação ideológica e sem o qual as divergências não teriam tamanha causticidade. Afinal, como muita gente já falou por aí, a polarização não é necessariamente ruim. Passamos duas décadas, relativamente bem, sob o antagonismo entre PT e PSDB. Ruim é quando normalizam na disputa o dedo no olho e o chute no saco.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 25 de Agosto de 2024, mostra o desenho de um estilingue com dois elásticos presos em lados opostos da forquilha

Até poucos anos atrás eu levava meus filhos pra escola num carrinho duplo. Os dois nasceram com um ano e meio de diferença (sensação térmica de duas semanas) e cabiam ali, feito gêmeos. Não passou um dia em que eu tentasse atravessar a rua e os carros, ao verem os bebês despontando na faixa de pedestres, não só não parassem, mas acelerassem. Veja bem. A pessoa vê dois nenéns, dois seres humanos de 15 quilos cada indo pra escola de chupeta e naninha e joga contra eles uma máquina de uma tonelada. Isso não é de esquerda nem de direita. É grotesco.

Estou agora em Ribeirão Preto, a trabalho. Quando o avião pousou, a aeromoça falou que o desembarque seria escalonado. Primeiro, poltronas 1 a 5. Depois 5 a 10 e assim por diante. Mal acabou de explicar e já tava todo mundo de pé, se aglomerando na frente. Quem não conseguiu levantar só saiu de suas poltronas depois de todos os espertos descerem pela escadinha. Dane-se a senhora de 87 anos da poltrona 09 D. O cadeirante da 1 A. A grávida da 17 B que teve que esperar todos os passageiros descerem pra pegar a mala no compartimento um metro atrás.

O exemplo pode soar elitista. Sem problemas. Trago-o aqui não pra lamentar como sofro na pele as mazelas do país, mas para mostrar que a incivilidade não é reservada ao outro lado da trincheira. Não havia ali no avião qualquer disputa ideológica, era só a lógica hobbesiana de que o mais forte (ou mais rápido) deve levar a melhor.

O problema do Pablo Marçal não é ele ser de direita. (Até porque, sem proposta alguma, fica difícil avaliar). O problema, ou melhor, o que deveria ser um problema, principalmente para os que se identificam como conservadores, como cristãos, como defensores da moral e dos bons costumes, é ele ser contra o bom dia, o boa tarde e o boa noite, contra o por favor e o obrigado, contra o sinal verde, o amarelo e o vermelho. É dedo no olho, chute no saco.

A imprensa o tem descrito como "antissistema". Talvez na Suécia, em que o sistema garante educação, saúde, bem-estar, bom dia, boa tarde e boa noite a todo cidadão, ele fosse "disruptivo". No Brasil, onde a barbárie é institucionalizada, motoristas avançam contra bebês, matam o motoboy que quebrou o espelhinho e o PCC constrói um império, Marçal é o maior representante do sistema.

Não há radicalismo em ser ogro em tempos de ogros, em ser bárbaro na barbárie. Marçal é o candidato do establishment. Precisamos de um(a) radical, um(a) revolucionário(a) que seja capaz de ouvir, pensar no bem comum, parar na faixa, dizer por favor e obrigado, respeitar a lei e fazer com que a lei seja respeitada. Temo, contudo, que essa pessoa seja vista como extremista demais para tempos tão conservadores.

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