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Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

Tentativas de submeter representação artística a consenso são canhestras

O desejo transborda e escapa à razão; é o que está por trás da experiência da grande arte

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O obituário de Philip Roth publicado no jornal The New York Times incluía uma declaração surpreendente do escritor: “Updike e Bellow iluminaram com sua lanterna o mundo que está aí. Eu cavei um buraco e acendi a lanterna”. 

Sem desmerecer os dois colegas nomeados, expoentes incontestáveis da literatura americana do século 20, a declaração supõe que haja mais de um tipo de realismo.

É difícil ignorar, além disso, a conotação sexual da metáfora, ainda mais num escritor como Roth, cuja obra está traspassada pelo desejo e pelo dilema de personagens cujo desejo (o que lhes dá vida) também os põe em desacordo com o mundo ao qual pertencem.

 

O preceito cria um problema não só para o consumo tranquilo da cultura submetida à lógica da oferta e da demanda, como para a própria ideia de pertencimento e identidade. 

Militante negro e gay, Baldwin escreveu que “nada é estável sob o céu”. O que o fazia lutar pelas identidades também lhe permitia desconfiar delas. 

A singularidade radical do artista negro e gay, com tudo o que pode haver aí de experiência de exclusão, incompatibilidade e desconforto, garantiu-lhe o que hoje pode soar paradoxal às lutas identitárias: a distância necessária para desconfiar das convenções, das certezas e das tradições que vendem a ilusão de terem sempre existido —e das identidades que nelas se baseiam.

Há pouco mais de um ano, assisti em Berlim à apresentação de uma professora que analisava, à luz dos estudos pós-coloniais, as obras de Baldwin e de um artista africano cujo nome já não lembro. 

A obra do artista lhe caía como uma luva. Cada elemento das esculturas alegóricas correspondia, como uma ilustração, a um aspecto do discurso acadêmico que as antecedia: opressão colonial, opressão da mulher etc. 

O mesmo já não se podia dizer dos textos de Baldwin. Havia sempre um momento em que a professora se via obrigada a explicitar suas reservas (“aqui já não posso segui-lo”), sem conseguir encaixar a liberdade de pensamento do autor nos moldes do seu discurso.

O desejo transborda e, assim como a morte, escapa à razão. É o que está por trás da experiência da grande arte. 

E o que torna tão mais canhestras as tentativas de submeter as representações artísticas a algum tipo de consenso ou regra previamente concebida, por mais inovadora que pareça.

No quarto e último volume da sua “História da Sexualidade” (“As Confissões da Carne”, publicado este ano na França), Michel Foucault expõe os mecanismos usados pelo cristianismo primitivo e medieval para ganhar jurisdição sobre a vida íntima dos indivíduos e dos casais.

A confissão foi o principal deles, mas para que o controle da intimidade tivesse efeito de lei, era preciso distinguir o sexo do desejo, opor a vida regrada ao descontrole, o sexo moderado do casamento à devassidão do desejo.

É interessante que, ao contrário dos movimentos de emancipação de gays e lésbicas, insuflados pela afirmação do desejo, os discursos identitários atuais tendem a incriminá-lo na defesa de gênero. 

Pode ser apenas uma estratégia passageira e necessária no combate aos abusos sexuais, a etapa inicial de uma luta inédita e bem-vinda pela defesa dos direitos individuais e da igualdade, mas também pode ser mais do que isso: a armadilha de um mundo idealizado com base numa contradição infantil, pois a incriminação do desejo encobre a vontade onipotente de banir da vida o incontrolável que a define e, da arte, o real que a engrandece.

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