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Philip Roth ajudou a enxergar tonalidades onde não parecia haver mais que duas cores

O autor acusado de machismo e misoginia deu voz a um séquito de homens patéticos e fracassados

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Philip Roth em seu apartamento, em Manhattan
Philip Roth em seu apartamento, em Manhattan - Philip Montgomery/The New York Times

1) Com uma voz inconfundível, Philip Roth construiu um universo particular e autorreferente. 2) Philip Roth soube traçar com rara precisão um retrato da América do século 20. 3) Philip Roth encarou como poucos a herança judaica. 4) Philip Roth é o escritor da doença, da decadência e da morte. 5) Philip Roth é o criador de uma série de personagens canalhas.

Todas as frases acima poderiam descrever a obra do autor nascido em Newark, no estado de Nova Jérsei, em 1933.

Roth fez sua estreia com “Adeus, Columbus” em 1959. Na novela que dá título ao livro e nos cinco contos, já é possível perceber um registro que nunca o abandonaria por completo: muito além do tragicômico, o tom escolhido combina uma austeridade ligeiramente velada a um deboche que não poupa ninguém, muito menos os judeus.

Mesmo tendo dado o que falar nos círculos judaicos e recebido o National Book Award pelo livro de estreia, foi só em 1969, com “O Complexo de Portnoy”, que Roth alcançou uma projeção maior.

“Portnoy” é puro escracho, mas ainda não era o ápice da provocação —que só viria em 1995 com a obra-prima absoluta “O Teatro de Sabbath”. Desesperado para se ver livre da vigilância dos pais em particular e do peso de ser um jovem judeu em geral, Portnoy alivia a angústia com certa compulsão autoerótica.

“O Professor do Desejo” e “O Animal Agonizante” compõem, ao lado do kafkiano “O Seio”, a trilogia protagonizada por David Kepesh —outro personagem licencioso. Portnoy, Kepesh e Sabbath são, de acordo com o próprio criador, a expressão do que há de subversivo e descarado, do absurdo cômico.

É inútil negar que uma parte importante do universo de Roth é autobiográfica. Partindo da própria experiência, ele ironizou a carreira de escritor e os vários desentendimentos com os judeus —que chegaram a acusá-lo de antissemitismo— com o auxílio do alter ego Nathan Zuckerman. No brilhante “O Escritor Fantasma”, de 1979, sobra até para Anne Frank. “Zuckerman Libertado”, de 1981, e “Lição de Anatomia”, de 1985, terminam de ironizar os sofrimentos físicos e psicológicos pelos quais passa um autor de ficção. Doente e desiludido, depois de uma aparição em “O Avesso da Vida”, de 1986, Zuckerman se despediu dos leitores no brutal “Fantasma Sai de Cena”, de 2007.

Os três romances narrados por Zuckerman —e dos quais ele participa apenas de modo indireto— foram escritos na maturidade de Roth e formam uma espécie de trilogia sobre as grandes transformações ocorridas nos Estados Unidos: “Pastoral Americana”, de 1997 (com o qual venceu o Pulitzer), “Casei com um Comunista”, de 1998 (no qual satiriza seu casamento com Claire Bloom), e “A Marca Humana”, de 2000 (onde menciona o “êxtase da santimônia”, algo a que toda a obra de Roth se opõe com ferocidade).

Além de Zuckerman, personagens chamados Philip Roth surgem em “Operação Shylock”, de 1993, escrito depois de uma fase difícil, e “Complô contra a América”, de 2004, em que imagina um destino alternativo para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra.

Virada

Talvez haja mesmo um ponto de virada na obra de Roth, localizado em algum momento dos anos 1980. Em “Patrimônio”, publicado em 1991, Roth detalha não só a doença e morte do pai (e da mãe, repentina) como os próprios achaques. Daí em diante, os personagens são quase sempre confrontados com a decadência física e a finitude.

Escritas de 2006 a 2010, as quatro novelas finais —na ordem, “Homem comum”, “Indignação”, “A Humilhação” e “Nêmesis”— são uma boa amostra dessa transformação. Na forma da pólio, a ameaça da doença e da morte paira inclusive sobre as crianças. A sanidade de um ator declina junto com a carreira.

Dos muitos reveses, Roth extraiu passagens maravilhosas. Ele disse certa vez que se as coisas ruins não fossem aproveitadas na ficção, então teria passado pelo sofrimento em vão. Ele se referia ao primeiro casamento.

A obra de Roth foi interpretada de várias maneiras, não raro contraditórias. O autor acusado de machismo e misoginia deu voz a um séquito de homens impotentes, patéticos e fracassados. Também escreveu, em 1967, “As Melhores Intenções”, romance em que deposita um olhar atento sobre a única protagonista mulher de sua carreira, Lucy Nelson.

Com uma percepção apurada do tempo histórico e daquilo que se pode chamar, de modo um tanto genérico, de natureza humana, Roth soube criar personalidades e situações que nos ajudaram, e continuarão a nos ajudar, a enxergar uma série de tonalidades onde antes não parecia haver mais que duas cores. É o papel da literatura.

Philip Roth foi um gigante ao permitir que a literatura cumprisse seu papel com tanto humor, tanto engenho e tanta força.

"Farewell, esteemed mentor."

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