Siga a folha

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

Apesar das pilhas de cadáveres, o mito continuou a ser venerado

Não importa se à esquerda ou à direita, nada é pior do que o populismo totalitário ungido de um poder divino

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Ele era saudado como divindade. No início da revolução, aliou-se às milícias e por toda vida pública agiu segundo a lógica desses grupos marginais.

O país, sob seu comando, investiu pesado na indústria bélica, trocou grãos por armamento e diminuiu gastos em saúde, ciência e educação. Milhões morreram em nome de seu projeto de governo.

Ao sentir-se ameaçado pela reprovação de antigos aliados, o ser divino tramou um plano de controle da sociedade baseado no orgulho pátrio, na censura, na tortura e no medo.

A cultura e o ensino foram seus primeiros alvos.

Aparelhados pelo Estado, o cinema, o teatro, a música e as artes plásticas se transformaram em instrumentos de propaganda. Artistas e intelectuais foram perseguidos, presos e assassinados.

O fechamento das escolas não tardaria a acontecer. Dispensados das aulas, os estudantes foram incitados a tomar as ruas. Professores, acadêmicos e catedráticos enfrentaram linchamentos, encarceramentos, martírios e morte.

Quando a lavagem cerebral da massa imberbe se completou e o pensamento crítico, o conhecimento e a razão foram de vez exterminados, o grande líder voltou sua atenção para os que antes o apoiavam.

O expurgo atingiu generais, juízes, líderes comunitários, ministros e chefes de polícia. Para substituir as Forças Armadas que, sem liderança, perderam a capacidade operante, foi concedido à população o porte irrestrito de munições e armas.

Coube a cada cidadão lobotomizado, a cada adolescente enfurecido defender o país de ideologias externas e salvaguardar o despotismo do senhor absoluto.

A nação sucumbiu à barbárie. Milícias ideológicas e campesinas espalharam-se como praga por todo o território.

Gangues sem lei e sem freio, crias de uma ambição desmedida, solaparam o que restava de civilidade.

O descontrole social obrigou o falso deus a ensaiar um recuo, concedendo o perdão tardio aos poucos sobreviventes da limpa. Militares e políticos reassumiram os velhos postos para tentar conter a baderna.

A juventude armada foi reprimida com violência semelhante à por ela praticada. Transferida para campos de trabalho distantes dos grandes centros, lá envelheceu, vítima do devaneio coletivo no qual havia embarcado.

Mas apesar das pilhas de cadáveres, da fome, da desigualdade e do atraso crescentes, o mito continuou a ser venerado.

Falo de Mao Tsé-Tung.

Não importa se à esquerda ou à direita, nada é pior do que o populismo totalitário ungido de um poder divino.

O problema não é de credo, é de mando. O ufanismo nacionalista floresce nas crises, com a promessa de livrar os descontentes de um sistema complexo e opressor, através da restituição de valores primitivos e tribais. Na prática, a teoria é outra. Na prática, a truculência e a fé cega fomentam delírios escatológicos.

É difícil refazer a estrada que culminou nessa falta de horizonte, nesse niilismo que hoje impera, campo fértil para genocidas patriotas. Leio teses, assisto ao jornal, troco impressões e só enxergo o juízo final.

Em meio ao estupor desse março pandêmico, que já beira 2.000 mortes por dia, recebi de uma amiga o link da série documental da BBC, “Can’t Get You Out of My Head”, de Adam Curtis. Os seis capítulos
estão disponíveis no YouTube.

Trata-se de uma retrospectiva histórica, desde a queda do Império Britânico até o advento da inteligência artificial. A estranha associação de fatos e imagens une Madame Mao aos Panteras Negras, o Google ao 11 de Setembro, o Valium ao subúrbio americano, a bomba atômica ao aquecimento global, a vida rural inglesa à jihad.

Centrada em personagens coadjuvantes da história, a narrativa aborda a eterna tensão entre as necessidades do indivíduo e as da coletividade.

Do atrito, emerge um estado de impermanência onde nada é o que se pensou, jurou, ou parecia ser: a internet vigia, o Oxycontin vicia, a democracia falha, o clima derrete...

Entre chocados e traídos, apelamos para o radicalismo, o fundamentalismo, para qualquer “ismo” que acene com a estabilidade. Daí Trump, daí Putin, daí o brexit, daí isso daí que está aqui.

Curtis conclui a revisão caótica com um elogio à imprevisibilidade humana. Nem o mais requintado dos cérebros eletrônicos é capaz de nos calcular. Por isso, “Can’t Get You Out of My Head” termina com um convite a imaginar o futuro que não há. “Imaginação morta imagine.”

Me deu ganas de imaginar.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas