Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Belo e Gracyanne

Sobre tão instáveis placas tectônicas, posso ao menos me agarrar às bistecas e às parmegianas das redondezas

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Nestes tempos polarizados alguns verão, no fenômeno abaixo, a metástase do comunismo. Outros enxergarão, na mesma situação, o oligopólio massacrando as lúmpen quitandas do proletariado. Eu, nem tanto ao mar, nem tanto à terra —ou seja, rolando no rasinho espumoso da minha ignorância— apenas observo, com admiração, os bares e restaurantes que vão comprando o vizinho, a sobreloja, atravessam a rua, tomam as quatro esquinas, até se converterem em pequenos arquipélagos de comes e bebes, poderosas polinésias dos acepipes.

O primeiro imperialismo botequeiro a que assisti foi o do Sujinho, na Consolação. Ia ali com meu pai e minha irmã, criança, comer bisteca. Lá pela adolescência eles expandiram pra casa ao lado. Quando entrei na faculdade abocanharam o andar de cima. Antes de eu terminar o TCC já estavam na esquina da frente, depois em cima da esquina da frente e assim seguiram, tomando toda a vizinhança.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 28 de Abril de 2024, mostra o desenho da fachada de um boteco típico paulistano com toldo e mesas na calçada.
Adams Carvalho

Anos atrás, comecei a frequentar a Santa Cecília. Me perdia muito pelo bairro. Só após meses pedindo dezenas de informações a garotos de coque carregando ukuleles e moças de coturno mestrandas em marcenaria, entendi: existem inúmeros bares idênticos chamados Jhony´s. Eu achava que estava na Fortunato, mas estava na Canuto do Val. Acreditava estar indo em direção à Angélica, chegava no Minhocão. Eram os múltiplos Jhony’s a me confundir, feito múltiplos Cruzeiros do Sul no céu de um navegante.

Não reclamo. Pelo contrário. Tanto o Sujinho quanto o Jhony’s têm a virtude pouco habitual de subir na vida sem ficar besta. Os Sujinhos são iguais desde sempre, mesmos azulejos, mesma luz fria, mesma bisteca —que pode não ser a melhor carne de São Paulo, mas é das que mais gosto.

O Jhony’s corria ainda mais risco de sofrer uma harmonização facial. Em pouco mais de dez anos, Santa Cecília passou pelo maior processo de "hipsterização" que a cidade já viu —e não vai aqui nenhuma crítica. Gosto dos hipsters. Eles fazem pão e defumam carnes, cuidam de plantas e andam de bicicleta. Muito melhor a "hipsterização" de Santa Cecília do que, digamos, a "moemização" de Perdizes —dezenas de casinhas geminadas dando lugar a neoclássicos Place des Vosges e pseudomodernos condomínios Orange County, quatro vagas por apartamento, "visite o decorado".

Tais virtudes hipsters de Santa Cecília, porém, poderiam ser por demais sedutoras aos Jhony’s. Da noite pro dia, as mesas de fórmica poderiam ter sido trocadas por balcões de aço escovado, o filé à parmegiana do cardápio, quem sabe, daria lugar a saladas de "avocado" com "maca peruana", mas não. O arquipélago gaulês mantém suas características —o que só o faz mais atrativo aos invasores bárbaros. No meio de um monte de restaurantinho charmoso, bar de drinque autoral, sebos e demais empreendimentos cool, o império do desconhecido Joãozinho permanece incólume —e, ao contrário do filme, não precisa dizer "Meu nome não é Jhony’s".

Não sei bem onde quero chegar com essa crônica. Não tenho qualquer tese. (Hoje se espera tese até para se chupar um Chicabon). Escrevo, talvez, por sentir certa segurança, num mundo em que tudo muda a cada instante, nessas sólidas mesas de fórmica, nessas luzes frias e azulejos a se reproduzir pelas calçadas. Talvez a inteligência artificial substitua a todos nós no trabalho. Talvez a Amazônia se transforme num deserto. Nem o casamento do Belo com a Gracyanne é sagrado. Sobre tão instáveis placas tectônicas, porém, posso ao menos me agarrar às bistecas e às parmegianas das redondezas. Às mãos sujinhas desses joãozinhos. #tamojunto.

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