Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Treinei para viver um dia após o outro, numa crise que duraria um ano

Zerado o calendário de 2020, sou forçada a aceitar que a desgraça se arrastará pela década

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Pouco antes de morrer, o neurocientista Oliver Sacks publicou “Minha Vida”, um texto de despedida sobre o seu sentimento diante da proximidade inevitável da morte.

No dia 30 de agosto de 2015, seis meses depois da reflexão, Sacks não resistiria às complicações causadas por uma metástase no fígado, diagnosticada nove anos depois de um melanoma lhe roubar a visão do olho esquerdo.

“Sinto uma súbita nitidez de foco e de perspectiva. Não há tempo para nada que não seja essencial. [...] Não vou mais assistir ao noticiário na televisão toda noite. Não darei mais atenção à política ou ao aquecimento global. Isso não é indiferença, mas distanciamento —eu ainda me preocupo muito com o Oriente Médio, o aquecimento global e o aumento da desigualdade, mas esses assuntos não me cabem mais; eles pertencem ao futuro.”

O caráter investigativo, refinado de Sacks revelava uma estranha recompensa na morte. O desapego, o alívio do peso imenso do mundo, vindo de alguém que enfrentava o fim súbito.

Quando a OMS decretou a pandemia, fui tomada por uma angústia impotente, que até então desconhecia. O pânico de um destino coletivo, do qual era impossível escapar. Aos poucos, à maneira de Sacks, treinei-me para viver um dia após o outro, projetando uma crise que duraria um ano, não mais.

Ilustração de Marta Mello para a coluna de Fernanda Torres de 7 de fevereiro de 2021
Marta Mello/Folhapress

Zerado o calendário de 2020, sou forçada a aceitar que a desgraça se arrastará pela década. Com a multiplicação das cepas, meu clínico geral só acredita na volta à vida pregressa depois do surgimento de um antiviral que, caso seja descoberto, levará cinco anos para chegar ao mercado.

Sigamos nesse novo insuportável normal, num Brasil regido pelo eterno fisiologismo, orgulhoso de ser pária na geopolítica mundial.

A posse de Joe Biden, precedida pela invasão do Capitólio, foi o grande acontecimento do mês de férias da colunista. Durante a cerimônia, chamou-me a atenção a fragilidade no rosto dos empossados.

Presidente e vice, ex-presidentes, atletas e artistas procuravam sublinhar os valores que fizeram da democracia americana um modelo de liberdade e oportunidade, mas a preocupação e o medo eram mais que evidentes em seus semblantes.

“Somos ousados, destemidos e ambiciosos”, lembrou Kamala Harris. “Não nos amedrontamos em nossa crença de que venceremos, de que nos levantaremos.” Mas a própria necessidade de reiterar a coragem e a capacidade de se reerguer denunciava a vulnerabilidade do rito.

É a queda do Império Romano, pensei, sabedora de que vivo em uma das tantas colônias remotas da Roma moderna. Como se não bastasse o vírus e o caos pátrio, a incerteza futura se estende pelo próprio Ocidente que me pariu. Por que não matriculei meus filhos num cursinho de mandarim?

Ao contrário de Sacks, viver somente o presente não é opção viável. Aos 55 anos, tornei-me esteio das gerações que me antecedem e sucedem. Minha mãe e meus filhos. Existo entre o passado e o futuro. Entre a saudade e o receio.

Nesse lá e cá ansioso, que abrange a família e a coletividade, como alcançar o foco do neurocientista na antessala da morte? Não consegui. Oca e dispersa, fui salva pela releitura da história.

Começou com um livro que abri ao acaso, “O Vulto das Torres”, de Lawrence Wright, ganhador do Pulitzer, que narra a ascensão do fundamentalismo islâmico, desde a década de 1930 até a queda das Torres Gêmeas.

O impensável atentado, gerado muito antes daquele 11 de Setembro; o embate com Israel, a humilhação árabe, o assassinato de Anwar Al Sadat; a prisão e tortura de acadêmicos radicais do Egito que, exilados na Arábia Saudita, fariam a cabeça de jovens como Bin Laden. Fatos atordoantes, por mim testemunhados, que expostos em retrospectiva, ganhavam sentido lógico numa clara linha do tempo.

Recuperei o prazer da leitura, desaparecido ao longo do terror pandêmico. Findos os árabes, me dediquei aos chineses, os novos senhores desse planeta em desalinho.

Recomendo com veemência a biografia de Mao Tsé-Tung, “Mao, a História Desconhecida”, de Jon Halliday e Jung Chang, em dobradinha com a série documental “A Segunda Guerra em Cores”, na Netflix.

Se você acha que está difícil, dê graças por não ter nascido na Eurásia no início do século 20, sob o domínio de Hitler, Stálin e Mao.

Para aqueles que, como eu, nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura ché la diritta via era smarrita, aconselho a descida ao inferno dos desvarios passados.

É uma baita lição de resiliência para o tortuoso agora.

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