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Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Descrição de chapéu 11 de setembro

Pensar tragicamente é a melhor forma de evitar a tragédia

Robert Kaplan faz mea-culpa sobre invasão do Afeganistão e do Iraque

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Os comentadores políticos têm vida santa. Por maiores que sejam os erros, nunca há consequências. O cavalheiro pode prever uma coisa e depois acontecer outra.

Ou, ligeira variação, pode defender um caminho e esse caminho levar à ruína de um país.

Nenhum problema. Na semana seguinte, ele estará prevendo novos cenários ou aconselhando novos desastres.

Mas há exceções. Robert D. Kaplan é uma delas. Lembro-me bem: Kaplan, depois do 11 de Setembro, cavalgando a onda dos neoconservadores e defendendo a invasão do Afeganistão e do Iraque.

Para Kaplan, o objetivo não era apenas punir o Taleban ou derrubar Saddam por conta das suas imaginárias armas de destruição em massa.

Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 20 de março de 2023 - Angelo Abu

Não. A loucura era mais profunda: os Estados Unidos deveriam levar a democracia até o Oriente Médio tal como levaram à Alemanha e ao Japão depois de 1945.

Não aconteceu, para usar um eufemismo. E Kaplan publicou agora um mea-culpa que, parcialmente, o redime: "The Tragic Mind: Fear, Fate, and the Burden of Power", uma mistura de autobiografia e encontro com os clássicos.

A autobiografia explica-se em breves linhas: Kaplan conheceu o Iraque de Saddam Hussein nos anos de 1980, como jornalista, e ficou horrorizado com aquela prisão a céu aberto.

Saddam Hussein durante julgamento em que foi condenado ao enforcamento - Nikola Solic/Pool via AFP

Conclusão: tudo servia para derrubar Saddam, até a crença infantil de que, depois do tirano, qualquer regime seria melhor.

Essa ilusão durou até 2004, quando o próprio retornou ao país e encontrou um caos que era bem pior do que a ordem sufocante do passado.

Quem diria. Sim, quem diria que a ordem, mesmo que perversa, pode ser preferível a uma anarquia selvagem?

Na verdade, qualquer grande clássico do pensamento político o poderia ter informado: sem ordem, a vida é "solitária, pobre, sórdida, brutal e curta", como dizia o tio Tomás.

Sem falar dos dramaturgos gregos, com quem Kaplan aprendeu tarde uma grande lição: só quem sabe pensar tragicamente pode evitar a tragédia. O que significa pensar tragicamente?

Não, não é pessimismo, ou fatalismo, ou estoicismo. Pensar tragicamente é uma forma de conhecimento, escreve Kaplan, embora eu acrescente: é uma forma de conhecimento sobre o nosso desconhecimento.

A mente trágica, em política, está sobretudo sintonizada para as contingências da vida –acasos imprevistos, atos de terceiros, forças culturais ou religiosas que são invisíveis aos olhos, mas determinantes.

Por todos esses motivos, a mente trágica é sempre modesta e humilde. Ela sabe, ela reconhece o lugar diminuto que ocupamos no esquema geral das coisas.

A ideia de que os Estados Unidos podem consertar o mundo –em todo lado e ao mesmo tempo, como no filme– é uma violação da sensibilidade trágica, que o autor se penitencia por ter cometido. E por que motivo os políticos e os analistas de hoje têm pouca sensibilidade para o trágico?

A hipótese avançada por Kaplan, que ironicamente não se aplicaria a ele, passa pela falta de experiência real com as brutalidades da vida.

Longe vão os tempos em que Dwight Eisenhower, o 34º presidente dos Estados Unidos, que comandara o desembarque na Normandia, resistia aos conselhos dos seus "especialistas" para usar o arsenal nuclear na Coreia, salvar os franceses no Vietnã ou declarar guerra aos soviéticos por causa da invasão da Hungria.

Os líderes de hoje, que cresceram na paz e na abundância, nem hesitam em começar guerras por escolha –a suprema forma de loucura, como lembrava Eurípedes, em "As Troianas", pela boca de Cassandra.

O que é válido para os líderes é sobretudo válido para a "intelligentsia", dentro da sua bolha e perfeitamente alienada das dimensões mais primitivas da natureza humana.

Vladimir Putin trata de assuntos referentes à invasão da Ucrânia no Kremlin - Alexey Nikolsky - 28.fev.22/Sputnik-AFP

Na luta eterna entre Apolo e Dionísio, tudo era apolíneo para a "intelligentsia". Invadir o Iraque, derrubar Saddam Hussein, fazer eleições e entregar a chave do novo apartamento ao vencedor era um programa tão racional que só gente irracional poderia recusá-lo. E gente irracional não conta, certo?

Vinte anos depois da invasão do Iraque, as elites de Washington que cozinharam esse prato permanecem caladas –ou, pior, verborreicas como sempre.

Tivessem elas passado uma temporada no Afeganistão e no Iraque talvez o encontro com a tragédia fosse uma forma de salvação.

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