João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Vítimas da guerra na Ucrânia são notadas apenas por serem brancas?

Explicar a comoção do Ocidente com o conflito pela lente da branquitude é confundir o acessório com o essencial

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Há um novo elefante no meio da sala —será que o mundo chora as vítimas da guerra na Ucrânia porque elas são brancas?

A pergunta é formulada por Michael Shank na revista Time. A resposta é afirmativa. Quando há agressões no Oriente Médio, na Ásia, na África, cometidas por nativos ou potências ocidentais, ninguém verte uma lágrima pelos mortos e refugiados.

Mas como é no hemisfério norte, mais perto de casa, envolvendo comunidades cristãs, sentimos uma emoção especial.

Imagem horizontal. Diversos Mísseis cujas formas remetem às icônicas torres da Praça Vermelha de Moscou despencam na diagonal, da direita para a esquerda da composição em alvo que se encontra além do enquadramento revelado
Ilustração publicada em 7 de março - Angelo Abu

Não discordo de Shank sobre esse ponto. Proximidade sempre foi empatia. Aquilo que nos torna humanos é a capacidade de nos imaginarmos no lugar dos outros?

Certo. Mas Adam Smith, que teorizou sobre o assunto, não era propriamente um cosmopolita. Essa "simpatia", para usar as palavras do filósofo, manifestava-se em círculos cada vez mais crescentes —começamos por cuidar de nós; depois, da nossa família; depois, da nossa comunidade. Eventualmente, de outras comunidades; dificilmente, de toda a humanidade.

Haverá exceções, que quase derrotam a teoria de Michael Shank: ninguém tem dúvidas que as imagens da brutalidade americana no Vietnã —como esquecer a criança nua correndo no asfalto depois de um bombardeamento de napalm?— levantaram os Estados Unidos contra o governo e apressaram o fim da guerra.

Mas é um fato, talvez injusto, que a natureza humana é o que é. Pobre e limitada com realidades distantes.

Num ponto, porém, Shank não tem razão: o que se passa na Ucrânia não é comparável a guerras recentes em outras paragens mais a sul.

Para ficarmos apenas nos exemplos mais citados: invadir o Afeganistão não foi por capricho. Aconteceu depois do 11 de Setembro porque o Talibã protegia os terroristas.

Em 2022, não consta que a Ucrânia tenha derrubado duas torres em Moscou com dois aviões comerciais sequestrados.

No Iraque, a decisão de invadir será mais problemática, ou até injustificada, ou até criminosa —é possível arguir qualquer dessas opções.

Mas Volodimir Zelenski não é Saddam Hussein. Também não consta que tenha usado armas químicas contra os próprios ucranianos, tal como Saddam fez contra os curdos.

Se existe uma emoção maior é porque existe uma ambiguidade menor na análise da guerra: foi Putin quem decidiu invadir um país democrático. É Putin quem bombardeia populações civis. É ele quem ameaça a paz na Europa, por mais erros que a Otan tenha cometido no período pós-Guerra Fria.

Mas a atenção obsessiva com a Ucrânia também se explica por dois fatores paradoxais: a situação é nova e a situação não é nova.

É nova porque Putin fala de um ataque nuclear com uma ligeireza preocupante. Esquecendo que a destruição é mútua e é assegurada —na cabeça de Putin, ele ficará intacto depois de apertar o botão. É número de teatro para enxotar qualquer ingerência da Otan?

Admito. Mas alguém pode censurar as opiniões públicas ocidentais por temerem, com particular estridência, o dia do juízo final?

Mas a situação não é nova porque o filme já foi visto antes —na Europa. A forma como Putin manipula a história, invocando mitos e ressentimentos para justificar o seu revanchismo, foi sempre a antecâmera de grandes conflitos.

Como lembra a historiadora Margaret MacMillan em "The Uses and Abuses of History" —ou os usos e abusos da história—, Mussolini prometeu aos italianos um regresso à grandeza perdida do Império Romano.

Hitler recuou até Tácito para reconstruir a mítica raça germânica, atraiçoada pelos "criminosos de novembro" (que assinaram o armistício e, depois, o Tratado de Versalhes).

Até Stálin, insuspeito de simpatias czaristas, gostava de mostrar aos seus convidados que o mapa do Império Soviético coincidia, quase na perfeição, com o antigo mapa do Império Russo.

A melodia de Putin desperta más memórias, eis o ponto. As suas ações também —reclamar a região do Donbass, em nome da população russa "perseguida", para depois invadir o país inteiro, parece uma cópia de 1938-1939, quando Hitler começou por exigir os Sudetos, em nome dos alemães "perseguidos", para depois devorar a Tchecoslováquia (e a Polônia).

Não admira que os países do Leste Europeu estejam em pânico. Eles se lembram.

Explicar a comoção do Ocidente com a Ucrânia pela lente da branquitude é confundir o acessório com o essencial.

Na paleta desta guerra, há cores para todos os gostos.

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