Siga a folha

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

Não é tão simples cultivar o silêncio

O desrespeito ao silêncio que há na música e no teatro é uma tortura

Assinantes podem enviar 7 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Em uma cena de "O Barbeiro de Sevilha", peça de Pierre Beaumarchais, Fígaro se esconde para surpreender as tramoias de don Bartholo e don Basile.

Depois, quando encontra Rosine, diz a ela: "Vosso tutor e vosso professor de canto, acreditando-se sozinhos aqui, acabam de falar abertamente...". Rosine então interrompe: "E o senhor os escutou, senhor Fígaro? Mas o senhor não sabe que isso é muito feio?". Fígaro dá uma resposta magistral: "Escutar? É, entretanto, o que ainda há de melhor para bem ouvir".

Essa frase, escrita no século 18, é a melhor chave para a conhecida composição de John Cage, "4'33''". Trata-se de uma obra para piano concebida em 1952. Tem três movimentos, um de 33 segundos, outro de 2 minutos e 40 segundos e o último de 1 minuto e 20 segundos. No início de cada um deles, o intérprete levanta a tampa do teclado, criando expectativa; no final, ele fecha. Apenas isso. Nenhuma tecla é acionada.

Em 1951, Cage visitara uma câmara anecoica, dispositivo que isola e absorve todo ruído. Descobriu que o silêncio absoluto não existe, porque ouvia os sons de seu corpo, produzidos pelo sistema nervoso e pela pulsação.

Em "4'33''", a tampa levantada faz com que os ouvintes prestem atenção no silêncio, que vem carregado de sons, graças a ruídos inevitáveis produzidos pela própria audiência. Escutar é ainda a melhor maneira de ouvir.

Imagino o quanto não deve existir de estudos em psicoacústica sobre audição seletiva. Sou mais próximo de Gaston Bachelard: "Sentimos perfeitamente que é necessário ultrapassar uma barreira para escapar aos psicólogos, para entrar num domínio que 'não se observa', em que nós próprios não nos dividimos mais em observador e observado. Então o sonhador funde-se por inteiro no seu devaneio. Seu devaneio é sua vida silenciosa" ("A Poética do Devaneio").

Tanto na situação de Cage quanto na de Bachelard, o ouvinte incorpora o silêncio. No primeiro caso, somos levados pelas sonoridades que habitam aquele silêncio provocado, e no segundo, pelos poderes de uma imaginação intensificada.

Inevitável, assim, concluir que o silêncio varia, formado que é por configurações diferentes: o silêncio das bibliotecas, o silêncio da casa vazia, o silêncio da noite, o silêncio do templo, o silêncio do sono, o silêncio da espera, o silêncio da ansiedade, o silêncio culpado ou que culpabiliza são alguns exemplos de sensações.

É Bachelard ainda que cita, em seu "A Poética do Espaço", uma passagem da peça "O Anúncio Feito a Maria", de Paul Claudel. Sublinha, nela, a união ontológica entre o invisível e o inaudível:

"Violaine (cega) "" Eu ouço... Mara "" O que ouves? Violaine "" As coisas existirem comigo". O silêncio é prenhe de presenças.

A leitura silenciosa torna-se bem comovente quando alguém move os lábios, formando para si mesmo uma palavra não pronunciada.

As pinturas são silenciosas. Estamos aqui além da metáfora: a hipnose que exerce um Vermeer sobre o espectador o obriga ao longo olhar que percebe o mistério sem elucidá-lo.

Mesmo quadros veementes põem-nos diante do silêncio: Argan mencionou em algum lugar o grito do vestido vermelho na Madalena aos pés da "Crucifixão" de Masaccio, mas esse grito soa apenas no interior de quem o contempla.

É possível avançar mais. Há um silêncio constitutivo no teatro, no cinema, na música. Nossa atenção é um silêncio que se atrela. Nela não cabem senão aqueles sons, que de algum modo paradoxal transformaram-se em silêncio (silêncio que nos pertence, como o vermelho que grita no quadro). O desrespeito a esse silêncio por ruídos indesejados, esses sim, autênticos, é uma tortura.

Odiamos perturbações que rompem o invólucro de quietude necessário para ver e ouvir. Então, tosse, conversa, qualquer barulho torna-se como que ofensivo.

Um fenômeno curioso ocorre nas salas de concerto. Há momentos em que o compositor faz a orquestra chegar quase ao imperceptível, negociando com o silêncio, em sublimes pianíssimos. Aí, justamente, multiplicam-se tosses, cadeiras remexidas e rangentes.

Cage diria que tais perturbações fazem parte da música ou, pelo menos, da audição. Tenho para mim que é fruto de um nervosismo diante do que parece ser o desvanecimento do som, mas que deveria ser, antes, a revelação de um silêncio feito de sons.

Não é tão simples cultivar o silêncio. Embora ele esteja sempre em nós como o indizível que sustenta, que pressupõe. Esse indizível que Carlos Drummond de Andrade evocou em seu poema "Os Lábios Cerrados": "nossa existência, apenas uma forma impura de silêncio".

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas