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Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

O muro invisível do racismo

Todos reagiam com espanto diante da possibilidade de suas condutas serem discriminatórias

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"Pois é, professora, ele não tinha cara de aluno da USP", comentou comigo o policial militar, meio sem graça, em particular. Estávamos no fim de uma reunião entre representantes da corporação e a Comissão de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo. Tratava-se de saber por que o policial havia dado um empurrão no único negro que se envolvera em um incidente menor com um grupo de estudantes.

Fui ouvidora-geral da USP entre 2014 e 2017. Nesse período, recebi queixas semelhantes de alunos abordados pela segurança do campus ou a quem um professor perguntava se realmente faziam parte daquela classe. Tinham em comum apenas a condição de serem negros. Tampouco eram brancos alguns daqueles cujo comportamento alunas viam ­como assédio. Não eram acontecimentos frequentes. A rigor, foram raros nos quatro anos em que ali atuei. Mas sempre me chamou a atenção o fato de envolverem jovens que, por serem negros, não pareciam estar no lugar certo numa instituição de ensino superior que, naqueles anos --hoje nem tanto--, era muito, muito branca.

Não me cabia investigar a autenticidade das denúncias. Pelo sim, pelo não, sempre as tratei como verdadeiras. Chamava os envolvidos, explicava o que pesava contra eles, ouvia o que tinham a dizer e lhes informava que racismo é crime --inadmissível na universidade e em qualquer outro lugar. Todos reagiam com espanto diante da possibilidade de que sua conduta pudesse ser interpretada como discriminatória.
Nenhuma das pessoas com quem falei --alunas, professores, membros da guarda universitária ou da PM-- se reconhecia racista. E não creio que fosse por cálculo ou cinismo. Parecia-lhes razoável desconfiar da presença de quem não pertencia àquele lugar, por sua cor e decerto por destoar dos códigos compartilhados do vestir ou do agir.

Talvez seja essa a melhor tradução do que se tem chamado racismo estrutural. A abominação se materializa nos processos e mecanismos impessoais que distribuem de forma desigual entre negros e brancos, pobres e ricos, não só renda e riqueza, mas acesso a escolas e universidades de bom nível, serviços essenciais, pontos de consumo e de lazer --entranhando formas segregadas de convívio social. Mas, muito especialmente, configura padrões mentais, maneiras de ver a si, os seus e os outros, que naturalizam o preconceito a ponto de torná-lo inconsciente.

Como lembrou nesta Folha no último domingo o empresário negro Ian Black, "o pior do nosso racismo não está no sujeito que xinga uma pessoa negra na rua, mas na estrutura invisível que a impede de entrar nos lugares em que hoje os brancos são maioria".

O muro que separa a USP da marginal Pinheiros, em São Paulo - Adriano Vizoni / Folhapress

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