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Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

Nossa comida não é problema

Tempos de crise pedem economia e criatividade na cozinha

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O lobo bateu à porta. Fome, os caminhoneiros não chegam aos fornecedores. Filas, vamos morrer de fome.

Mercado municipal de frutas, verduras e legumes no Rio de Janeiro durante a paralisação de caminhoneiros - Lucas Landau/Folhapress

A repórter nos transmite esse sentimento de impotência tendo como fundo uma gôndola de supermercado atulhada de frutas de todas as espécies. Vão ficar lá a apodrecer pois não há quem as compre, ou por falta de imaginação do vendedor. Não podem ser transformadas em sucos, em gelatinas, em polpas? Não, adoramos um drama.

Lembro-me dos ataques de economia de minha mãe. Adorava a possibilidade de ser econômica, coisa bem pouco brasileira. Nunca a peguei comendo casca de banana, como hoje se faz, mas experimentava o que lia nas revistas. O que mais a agradava era cozinhar arroz e feijão sem fogo. Pegava uma caixa de papelão, enchia de palha ou jornal, com um conveniente ninho para uma panela. Começava a fazer o arroz, dava uma douradinha, juntava a água e tampava bem. A mesma coisa com o feijão, que havia sido posto de molho à noite.

E, olá! O milagre da comida feita sem fogo e perfeita.

Tivemos tempos em que as pessoas faziam filas em frente aos açougues. Carne era impossível. Um problema. Coisa que me irrita é fila. Fiz de conta que éramos vegetarianos, criatividade a funcionar, e ninguém percebe que está comendo sem carne. Há possibilidades de banquetes veganos sem que os convidados percebam a falta.

Então, amigos, vamos lá: é hora de assistir ao programa da Bela Gil, pegar restos de inhame e de cará, brotos de chuchu que sempre existem na vizinhança, elaborar moquecas de jaca verde. (Aquelas jacas da praça que estão dando até o chão e que ninguém liga.) E se não quiser ir tão longe, espalhe sobre a mesa os restos da geladeira ou da despensa. Vamos comer bem por uma semana. Aquele cuscuz que nos deram e que não usamos. Podemos fazer uma farofa de farinha de rosca japonesa, aquela que não usamos por esquecimento.

E visitar o quarteirão com olhos de pancs, com olhos de Neide Rigo. E nem isso é preciso, havemos de achar em casa mesmo o que precisamos.

Há um filme que adoro, um documentário de Agnès Varda, no qual ela nos mostra pessoas que se aproveitam de coisas jogadas fora e ainda em bom estado para serem comidas. E não são mendigos que as procuram, são gente que acredita no desperdício do mundo. Sempre me parecem um pouco lelés da cuca, mas numa hora dessas dá gosto vê-los gordos e bem alimentados, depois de frequentarem portas de padarias e de supermercados.

Você ainda tem um pouco de arroz? E um ovo? E uma tigela bonita japonesa? Uma flor de capuchinha no vaso? Uma pimenta num vidro? Um chuchu muito verde? Gente, vai ser um arroz de gala, com hashis e tudo e ninguém vai perceber que seu supermercado estava um pouco vazio.

Não entendo como essa hora transforma-se em notícia de jornal e não num prazeroso ensaio de criatividade. Aquela lata de atum, a cebola velha, a criança aprendendo a bater uma maionese com uma gema só. Enfim a salada deliciosa, o atum brasileiro em lata sendo um dos melhores que existem.

Vamos nos preocupar com o que é realmente preocupante. Dar de comer aos que tem fome verdadeiramente. A nossa comida não é problema. Por enquanto. É divertimento.

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