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Edificai a família

Onde foram parar os amigos doidos que escolhi com tanto esmero?

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Tenho notado um fenômeno interessantíssimo: meus melhores amigos, escolhidos ao longo de décadas com precisão e esmero, pinçados com meus olhos cirúrgicos, catapultados de um mundo abarrotado de cópias tediosas de almas concretas e capturados pela minha atenção, viraram intragáveis conservadores. Estou sozinha. Se você quiser me levar para almoçar, te passo meu endereço.

Eles não ousam dizer a frase na minha cara, mas leio em suas retinas o outdoor que grita "é preciso edificar a família". Mesmo em alguns corpos magros, vejo o esmegma acumulado, a gordura espiritual, o andar pesado, ombros arredondados e endurecidos pela obrigação de ser e parecer um adulto, ser e parecer uma esposa, um marido, uma mãe, uma patroa. Chegaram à idade em que é preciso abandonar o misto doloroso de "desejo & confusão" para viver com entrega a escolha sufocante que os protege da exposição e do medo. Me assistem com pena e pavor (e inveja) porque sigo me debatendo e me afogando, de tempos em tempos (e como diria meu analista): "Em uma pocinha que é invisível a todos que se conformam com o que tem".

Não são, de forma alguma, piores do que eu. Parecem mais limpos, mais retos, melhores "parentes", mais preparados para não surtar no Natal, mas eu já tentei copiá-los e terminei o dia com vontade de flertar até com um poste, de rasgar minha roupa com os dentes e correr nua pelas ruas.

Com frequência, agora, esses amigos (que tanto se drogaram e fizeram surubas e traíram e surtaram e me fizeram perder madrugadas inteiras porque não amavam mais quem amavam ou porque amavam outro ainda que ainda amassem o primeiro até que voltassem a amar e se humilharam e foram cruéis e eram pessoas tão artísticas e intensas e maravilhosas e reais) me escrevem ou ligam com a voz e o linguajar do cardiologista que meu avô tinha em 1988. "Veja, Tati, é bem possível que, veja, amiga, acredito que". E ao final concluem que eu deveria me medicar.

Até mais ou menos nossos 35 anos existia um palco psíquico para que interpretássemos, protegidos, toda a nossa ambição, angústia, dúvida, paixão, infantilidade, maldade e loucura. Daí todo mundo se casou, teve filhos, fez 40 anos e CABOU. Se você tentar ser gente, vai levar apito do grupo. "Tá sem louça pra lavar, amiga?".

É preciso se tornar um robô funcional a partir dos 40 anos e, caso você não consiga, é preciso que a psiquiatria te derrube e te coloque nos trilhos. Não cabe a uma mãe de família quarentona se desestruturar. Você teve a juventude inteira para sentir a maluquice que é estar vivo. Agora finja não sentir mais nada disso e comporte-se como alguém que precisa edificar a família. Até porque, para boa parte da elite que me cerca, se você não for séria e boa aluna o suficiente para interpretar a boa mãe e a boa esposa, sua babá não vai te obedecer e você não vai conseguir mandar em seus funcionários, lugar de fetiche que hoje você ocupa como substituição de uma vida sexual.

Antes parceiros de "uma vida pela frente", hoje me olham indignados: "você já tem uma casa, uma filha, uma profissão, pra que mais, por que segue se debatendo na pocinha que é invisível a todos que se conformam com o que tem?". E eu respondo: Vocês eram tanta coisa e no fundo só queriam isso?

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