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Não, uma aldeia remota da Amazônia não se viciou em pornografia

Uma reportagem do New York Times sobre a chegada da internet de alta velocidade em uma aldeia remota da Amazônia acabou trazendo um alerta sobre o lado sombrio da própria web

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Jack Nicas
The New York Times

Em abril, caminhei mais de 80 quilômetros pela floresta amazônica para visitar as aldeias remotas do povo Marubo. A etnia de 2.000 indígenas tinha se conectado à internet de alta velocidade recentemente, e eu queria entender como isso havia afetado suas vidas.

Em uma visita de uma semana, vi como eles usavam a internet para se comunicar entre as aldeias, conversar com pessoas queridas distantes e pedir ajuda em casos de emergência. Muitos Marubo também me disseram estar preocupados que a conexão com o mundo exterior abalasse sua cultura, a qual eles vêm preservando por gerações na floresta. Alguns idosos reclamaram de adolescentes grudados em celulares, participando de grupo cheios de fofocas e vendo pornografia.

Como resultado da apuração, a reportagem que o New York Times publicou foi, em parte, sobre a introdução do povo Marubo aos males da internet.

Uma antena Starlink em uma aldeia Marubo em uma visita do New York Times em abril - Victor Moriyama - 7.abr.24/The New York Times

Mas, após a publicação, essa perspectiva tomou uma dimensão totalmente diferente.

Na semana passada, mais de cem sites em todo o mundo publicaram manchetes que afirmaram falsamente que os Marubo se viciaram em pornografia. Junto a essas manchetes, os sites publicaram imagens do povo Marubo em suas aldeias.

O New York Post, um tabloide de Nova York, foi um dos primeiros a dizer, na semana passada, que o povo Marubo estava "viciado em pornografia". Rapidamente, dezenas de veículos seguiram esse mesmo caminho. A manchete do site TMZ talvez tenha sido a mais contundente: "CONEXÃO DE TRIBO À STARLINK PROVOCA VÍCIO EM PORNÔ!!!"

O Post e o TMZ não responderam aos pedidos de posicionamento feitos pelo Times.

Manchetes parecidas se proliferaram em todo o mundo, inclusive em países como Reino Unido, Alemanha, Austrália, Índia, Indonésia, Malásia, Turquia, Nigéria, México e Chile. A RT, mídia estatal russa, publicou um texto com a alegação em árabe. Foram inúmeros vídeos, memes e posts nas redes sociais.

No Brasil, o boato se espalhou rapidamente, inclusive nas pequenas cidades amazônicas onde alguns Marubo hoje vivem, trabalham e estudam.

Um indígena Marubo usando a internet no celular - Victor Moriyama - 7.abr.24/The New York Times

O povo Marubo não é viciado em pornografia. Não havia nenhuma sugestão disso nas aldeias, nem na reportagem do New York Times.

Em vez disso, a reportagem citou a reclamação feita por um líder Marubo de que alguns adolescentes tinham compartilhado pornografia em grupos de WhatsApp. Isso é especialmente preocupante, ele disse, porque a cultura Marubo desaprova até mesmo o beijo em público.

Muitos sites que distorceram essa informação são agregadores de notícias, o que significa que seu modelo de negócios gira, em grande parte, em torno do reempacotamento de reportagens de outros veículos jornalísticos, muitas vezes usando manchetes sensacionalistas com o objetivo de vender anúncios.

Como esses sites também divulgam links para a reportagem original, eles geralmente estão protegidos por lei, mesmo que deturpem o conteúdo.

Hoje, esses tipos de sites e manchetes enganosas se tornaram mais uma parte da economia da internet. Para um usuário experiente da web, essas táticas são conhecidas.

Para os Marubo, porém, a experiência foi desconcertante e enfurecedora.

"Essas alegações são infundadas, mentirosas e só refletem uma corrente ideológica enviesada que desrespeita a nossa autonomia e a nossa identidade", disse Enoque Marubo, líder Marubo que trouxe a Starlink às aldeias de sua aldeia, em um vídeo postado em suas redes no domingo à noite.

Segundo ele, a reportagem do Times enfatizou excessivamente os aspectos negativos da internet e "resultou numa disseminação de uma visão distorcida".

Alfredo Marubo (todos os Marubo usam o mesmo sobrenome), líder que disse na reportagem do Times que estava preocupado com a pornografia, também se manifestou nesta terça-feira em um comunicado por meio de sua associação indígena. Ele disse que as manchetes enganosas têm o potencial de gerar "exposições irreversíveis à imagem das pessoas e, por isso, nos sentimos expostos diante da má interpretação da notícia verdadeira".

Eliesio Marubo, advogado e ativista pelos direitos indígenas, é uma das figuras mais conhecidas do povo Marubo. Por isso, quando as manchetes viralizaram, Eliesio disse que recebeu dezenas de milhares de mensagens e marcações em comentários nas redes sociais. Muitos zombavam do povo Marubo, disse ele.

Eliesio disse que a reportagem abriu um debate importante sobre a chegada repentina da internet de alta velocidade a grupos indígenas remotos. Essa discussão mostra as promessas da internet, mas ilustra seus perigos com a desinformação.

"A internet, de fato, traz muita facilidade", disse ele, "mas ela também traz muita dificuldade".

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