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Marcelo Rede

Teóloga examina participação de escravizados na redação do Novo Testamento

Novo livro mostra que pessoas humildes também que contribuíram para a difusão do cristianismo

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Marcelo Rede

É doutor pela Universidade de Paris 1-Panthéon-Sorbonne e professor de história antiga da USP

A tradição nos acostumou a ver as pessoas que escreveram o Novo Testamento como autores individuais e divinamente inspirados. Assim, os evangelhos canônicos foram atribuídos a Marcos, Lucas, Mateus e João, e a maior parte das cartas, a Paulo.

Um livro publicado em março por Candida Moss, professora de teologia da Universidade de Birmingham (no Reino Unido), traz reflexões interessantes sobre o tema. O título é "God’s ghostwriters" ou "Os escritores fantasmas de Deus". Sua ideia central é a de que os textos que depois compuseram o Novo Testamento foram escritos em um processo de colaboração com pessoas escravizadas.

De fato, já nos primeiros séculos os pensadores da Igreja se perguntavam se o evangelho de Marcos não seria de autoria de Pedro. Qual seria, então, o papel de Marcos? Um simples copista do que foi ditado? Um coautor? Por outro lado, sabe-se que Paulo contou com vários colaboradores, inclusive quando estava preso. Um deles declara ter redigido a Epístola aos Romanos. Chamava-se Tertius, um nome comum entre escravos no mundo romano.

A bíblia de Gutenberg, de 1455, o primeiro livro impresso com prensa de tipos móveis na Europa, em exposição em Paris - AFP

A ideia de que um seguidor de Jesus sentou e escreveu os originais de um evangelho ou de uma epístola e que estes textos foram reproduzidos fielmente por gerações de copistas simplifica uma realidade mais complexa. A separação entre um pensador intelectual do texto e aquele que pôs a tinta sobre um papiro ou pergaminho não era algo muito claro naqueles tempos.

Boa parte dos escritores da Antiguidade ditava seus textos a secretários ou escribas especializados nas artes da escrita. Por vezes, esses trabalhadores eram responsáveis por organizar, fazer as cópias manuscritas e mesmo cuidar da publicação das obras. E muitos deles eram ou haviam sido escravos.

Para Moss, esse trabalho não era uma simples reprodução mecânica das ideias ditadas pelos autores intelectuais. Pelo contrário, era uma espécie de coautoria em que a pessoa que realmente escrevia o texto escolhia as palavras, intervinha na argumentação, acrescentava ou excluía passagens.

Escrever podia ser uma tarefa extremamente penosa, que exigia longas horas e grande esforço físico. Uma boa disposição corporal e uma visão acurada eram mais facilmente encontradas em jovens servidores do que em discípulos de idade avançada. Além disso, os colaboradores eram qualificados para escrever em grego, a língua que permitiu que a nova fé se espalhasse pelo mundo mediterrânico.

Esses textos eram copiados, recopiados, enviados para os cantos mais remotos do império romano e frequentemente eram transmitidos para as plateias por via oral. Muitos desses primeiros missionários do cristianismo nascente foram pessoas humildes, mulheres e escravizados, o que era justamente visto negativamente pelos romanos. A ideia de que a expansão do cristianismo dependeu apenas de um punhado de apóstolos escolhidos diretamente por Jesus não explica seu sucesso.

As evidências desse trabalho criativo de pessoas escravizadas na redação dos evangelhos ou das cartas são raras e indiretas. Mas isso não surpreende. Nas sociedades escravistas, ocorre um verdadeiro silenciamento das tarefas realizadas pela mão de obra servil. Eles foram considerados somente "a mão" ou "a pena" dos verdadeiros autores. O tempo e a tradição reforçaram o esquecimento desses escritores invisíveis e consolidaram a imagem ilusória de um autor único, normalmente pertencente à elite letrada.

Candida Moss não tem a ambição de oferecer todas as repostas. Mas seu livro faz repensar como foram produzidas as narrativas sobre a vida de Jesus e como os escravizados puderam ter um papel ativo na redação dos textos que fundaram o cristianismo. Ao fazer isso, a autora não pretende questionar a autoridade dos textos do Novo Testamento, mas promover uma reparação histórica das pessoas humildes que contribuíram para sua criação e difusão.

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