Descrição de chapéu
Valdinei Ferreira

Sexo, drogas e evangélicos

Idealismo que move voluntários evangélicos na cracolândia faz com que ganhem a confiança de prostitutas, cafetões, dependentes e traficantes

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Valdinei Ferreira

É sociólogo, pastor presbiteriano independente e pesquisador na área de espiritualidade e saúde mental

São Paulo

Ju atendeu três homens desde que chegou ao prédio, na região da Santa Ifigênia, no centro de São Paulo. Enquanto espera o próximo cliente, abre a bolsa à procura de algo para preparar sua carreirinha de cocaína. O papel que ela puxa é um folheto deixado por uma missionária evangélica no dia anterior.

Quando Ju começa a fazer a carreirinha, olha para o endereço indicado no folheto. Sabia que o lugar ficava a poucas quadras de onde ela estava. Junta suas coisas, pega a bolsa e ruma para a ONG evangélica em busca de ajuda para deixar a dependência das drogas.

Diante da assistente social e missionária ela conta que é mulher casada, mãe de duas crianças e leva vida secreta na prostituição para sustentar o vício na cocaína. Está cansada e busca ajuda para recomeçar a vida longe das drogas.

A imagem mostra um grupo de quatro pessoas sentadas em um calçadão, com uma parede grafitada ao fundo. Uma das pessoas está em pé, fumando, enquanto as outras três estão sentadas no chão, algumas com mochilas e um chapéu. A parede atrás deles possui uma grande arte de grafite em tons de rosa e roxo
Usuários fumam crack na avenida Rio Branco, no centro de SP - Danilo Verpa - 25.jun.24/Folhapress

Às quartas-feiras voluntários de uma ONG evangélica entram no prédio de dez andares ocupado exclusivamente com atividades de prostituição. Foi nele que encontraram a Ju. Os cafetões já conhecem esses religiosos e a presença deles no prédio foi liberada. A condição imposta é que as conversas sejam rápidas para não atrapalhar o atendimento aos clientes. No contato anotam o nome da garota, o dia do aniversário e por quais motivos ela deseja que eles orem a Deus. As anotações facilitam o acompanhamento e tornam o contato com as garotas mais pessoal.

Nesse ano eleitoral as discussões sobre a cracolândia precisam ir além do intervencionismo burocrático do Estado. Os debates sobre políticas públicas para a região seriam enriquecidos pela escuta das experiências dos voluntários evangélicos que atuam há décadas na região.

O idealismo que move esses voluntários faz com que ganhem a confiança de prostitutas, cafetões, dependentes e traficantes. Afinal, eles permanecem por escolha num território que os demais paulistanos, se puderem, evitam passar nos seus trajetos pela cidade. A confiança aparece, por exemplo, quando cafetões chegam a encaminhar para as ONGs evangélicas as garotas cuja dependência das drogas começa a afetar o trabalho na prostituição.

Os contatos dos voluntários evangélicos com a população da cracolândia são guiados pela convicção que toda pessoa é mais que aquilo que faz para ganhar a vida ou sua condição de dependente químico. Por exemplo, prostituta tem nome, gosta de saber que seu aniversário será lembrado por alguém e tem, como qualquer um, sua lista de pedidos para Deus. A questão é: quem, além desses voluntários evangélicos, quer saber disso?

Não sei como vai a recuperação da Ju. Mas não ficaria admirado se, no futuro, ela retornasse para a cracolândia na condição de voluntária da ONG evangélica e com a missão de contar sua história para outros dependentes e ajudá-los a começar um novo capítulo na vida. De longa data sabe-se que o "RH divino" seleciona seus melhores santos dentre os grandes pecadores. Mulheres como Maria Madalena e a Ju serão sempre "top voices" no LinkedIn do reino dos céus.

Por falar em vozes, os voluntários evangélicos já iniciaram os ensaios do coral de Natal com a chegada do segundo semestre do ano. Na semana do Natal o coral vai a cada um dos dez andares do prédio da Santa Ifigênia. Eles contam que tanto as garotas quanto os cafetões aguardam ansiosamente essas apresentações. Detalhe: não é incomum que clientes saiam dos quartos e cantem de memória os hinos com o coral, o que indica que frequentam ou já frequentaram igrejas evangélicas. Vida secreta, ao que parece, não é exclusividade da Ju.

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