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Tóquio 2020 ginástica artística

Exemplos opostos de Simone e Rayssa mostram que desejo deveria pautar competição

Olimpíadas escancaram que ideal é não adoecermos para escapar de abusos, mas dizer não a eles

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O esporte de alta performance não tem qualquer relação com saúde, seja mental ou física. Trata-se de uma vida de privações, dores crônicas, exigências e solidão.

Tudo isso é aceitável na condição de responder ao desejo de quem o abraça como profissão. Nesta semana, duas histórias que se cruzaram no Olimpo dos esportes parecem apontar para realidades opostas no que tange a esse desejo.

De um lado vibramos com a medalha de Rayssa Leal nas Olimpíadas de Tóquio. Por outro, ficamos perplexos com a desistência de Simone Biles.

A ginasta americana Simone Biles, 24 - Reuters

Para Rayssa, o esporte parece ser um evento tão lúdico e prazeroso que nos dá a falsa sensação de que qualquer um poderia realizar suas proezas sobre o skate —não tentem.

Enquanto ganha o mundo sobre uma prancha com rodinhas, a menina de 13 anos com aparelho nos dentes dança e acena feliz. Não tendo nada a perder, sua premiação é só lucro, algo de que ela pode desfrutar. Inocente demais para que a cobrança de um título torne sua vida um inferno ou para que leve em consideração o sério risco de sofrer um acidente grave.

Simone Biles, na outra ponta, é um prodígio da ginástica olímpica, cujo desempenho poderia transformá-la na atleta mais premiada da história em sua categoria. Desde criança teve sua excepcionalidade identificada e recebeu, como Rayssa, todo o reconhecimento e admiração à sua volta a cada façanha que a diferenciava das demais.

Mas, diferentemente da jovem maranhense, ela se vê em um momento da carreira no qual o prazer da conquista deu lugar a um nível de responsabilidade e exigência cada vez mais alto. São atletas que ganham em nome do país, mas perdem em nome próprio.

Somos capazes de grandes sacrifícios para alcançar resultados que pareçam responder aos nossos anseios e que possam nos fazer admirados por todos. O difícil nesse jogo é saber o quanto do nosso desejo está alienado ao prazer do outro. Ou seja, o quanto nos oferecemos ao deleite da audiência, sem nos perguntarmos sobre o que desejamos.

Um jovem da tribo Sateré-mawé, para ser considerado um guerreiro, passará pelo ritual excruciante de manter a mão dentro de uma luva repleta de formigas tucandeiras, durante pelo menos dez minutos. Dor lancinante, inchaço, febre e alucinações —em função da neurotoxina do inseto— são algumas das sensações vividas num processo que dura em torno de 11 horas e que deverá ser repetido 20 vezes.

O que levaria alguém a buscar tal provação, se não o reconhecimento pessoal e coletivo de sua bravura?
Qualquer grande realização exige esforço e sacrifício, mas é crucial que nos perguntemos em nome do que e de quem o fazemos.

Simone Biles citou sua saúde mental para justificar seu gesto, e sua desistência foi interpretada como a marca de um fracasso. Estaria deprimida, sofreria burnout?

No entanto, se seguirmos a trilha das declarações da atleta veremos que o que tem sido apresentado como problema é mais provável que seja uma solução. Sair de situações insalubres —no trabalho, no casamento, na vida social— pode ser a marca não do adoecimento, mas da coragem de bancar o desejo à revelia das expectativas alheias.

No mundo ideal não adoecemos para escapar de situações abusivas, aprendemos a dizer não a elas.

Talvez Simone reencontre a alegria de Rayssa novamente, talvez Rayssa encontre o “peso do mundo sobre os ombros” a que aludiu Simone. Nesse sentido, mais do que torcer por medalhas, precisaríamos torcer para que o pódio responda ao desejo de quem o alcança, e não dos que simplesmente aplaudem.

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