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'Quando víamos a linha de chegada, cancelaram o plano de saúde', diz pai de menina com câncer

Operadoras rescindem contrato de crianças em tratamento de longo prazo; empresas afirmam cumprir a legislação

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São Paulo

Carla da Rocha Costa, 44, e a esposa viram o plano de saúde das duas e da filha Izadora, de 11 anos, autista, ser cancelado sem motivo. O valor da mensalidade da Bradesco Saúde era R$ 2.452, pago em dia.

"O advogado disse que era uma causa praticamente ganha, porque a Izadora estava em tratamento. Mas nós não temos esse dinheiro", diz Carla, professora de educação física, enquanto a esposa trabalha na área da saúde.

A alternativa que elas encontraram foi cada uma fechar um novo convênio com outras operadoras, a fim de aumentar a cobertura da filha, que entrou como dependente. "Ou a gente pagava um novo plano, ou pagava o advogado. Não quisemos arriscar. Se a gente não obtivesse a decisão judicial, a Izadora ia ficar sem atendimento algum", diz. Na rede particular, o tratamento da filha custaria R$ 20 mil ao mês.

Depois que a Folha entrou em contato com o Bradesco Saúde para saber os motivos da rescisão unilateral deste e de outros casos, o plano da filha de Carla voltou a ser ativado. "Disseram que houve uma falha operacional no envio da carta que comunicou o cancelamento, em fevereiro", afirma.

Carla havia entrado em contato com a operadora, questionando o cancelamento, mas no início de março teve como resposta que a rescisão era "uma prerrogativa da seguradora em consonância com a previsão contratual."

O caso delas se soma a outros semelhantes, em que crianças com tratamentos de longo prazo têm perdido a cobertura. O problema passou a ser investigado pelo Ministério Público, que abriu inquérito nesta quinta (18).

Questionadas pela Folha, as operadoras de saúde dizem que estão dentro da lei, porque a rescisão unilateral está prevista em contrato. A posição é compartilhada pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), autarquia responsável pela fiscalização das operadoras de planos de saúde e pela regulação do mercado.

"As famílias ficam em posição de extrema vulnerabilidade", diz o advogado Rafael Robba, do Vilhena Silva Advogados, especialista no direito à saúde. "Elas pagam um plano de saúde para usar quando alguém adoece. Mas o que vemos são operadoras rescindindo contratos quando o uso é constante, porque consideram oneroso", diz ele, que também recebeu no escritório cerca de 20 queixas relacionadas ao mesmo problema este ano.

O especialista chama a atenção para a prática nos casos de crianças com síndromes raras, câncer ou autismo, em que o tratamento será de longo prazo ou para a vida toda. "É como se as operadoras só quisessem como beneficiários os adultos saudáveis, que pagam o plano e raramente o usam", diz.

Conheça as histórias de outras três crianças, conforme o relato de seus pais.

Érika Thais Mariano e a filha Marina, 5 anos. - Jardiel Carvalho/Folhapress

Marina, 5, conforme relato da mãe, Érika Thaís Mariano

Marina recebeu o diagnóstico de autismo há dois anos. A terapia é o que vai garantir a sua qualidade de vida no futuro. Até os 3 anos, ela não falava, só gesticulava. Hoje ela consegue se comunicar, expressa sentimentos, mas isso depois de um trabalho insistente, contínuo.

Meu marido é motorista de aplicativo, eu trabalho com atendimento ao público. Hoje ela vai para a escola com acompanhamento terapêutico, depois vai para a clínica. Se a gente tivesse que bancar esse atendimento, não sairia por menos de R$ 30 mil ao mês. É algo impossível de pagar.

Faço parte de um grupo de WhatsApp com mais de cem mães de crianças autistas. É uma luta muito solitária a das mães, que acabam se apoiando umas nas outras. Muitas tiveram o convênio cancelado em abril. Todas, inclusive eu, com a Unimed. Eles me disseram que "o índice necessário para manter a qualidade dos serviços se tornaria inviável", e que por isso o contrato seria encerrado em 31 de maio.

No último ano, o preço do plano da Marina praticamente dobrou, passou de R$ 358 para R$ 689. Eu estava esperando que agora, em maio, houvesse um novo reajuste, mas o que houve foi um cancelamento. Eles não se importam com a gente, com a saúde da minha filha. Somos só um número que deixou de fazer sentido para eles.

Théo Artioli Azevedo com a filha Manuela e a esposa, Érika. - Arquivo Pessoal

Manuela, 9, conforme relato do pai, Théo Artioli Azevedo

Em agosto do ano passado, descobrimos que a Manu estava com um tumor ósseo no fêmur esquerdo. Decidimos fazer um upgrade no plano de saúde para oferecer a ela o melhor tratamento que podíamos pagar. Hoje, o meu plano familiar, para dois adultos e duas crianças, custa R$ 5.592.

Mas essa alteração não foi aceita de cara pela Unimed. Tivemos que entrar com uma ação na Justiça para não termos que passar pela carência de seis meses –o que é um absurdo, em se tratando do mesmo plano de saúde. Conseguimos a liminar e ela passou por 12 sessões de quimioterapia.

Em uma delas, teve uma complicação. Por algum motivo, a Unimed negou a internação. Tive que aumentar às pressas o limite do meu cartão, para R$ 20 mil, para conseguir internar minha filha a tempo. Mais uma vez, recorri à Justiça para ser ressarcido.

Minha mulher era terapeuta holística e precisou parar de trabalhar para acompanhar a Manu. Eu sou dono de uma empresa de comunicação. Temos outro filho, de 7 anos. A gente nunca precisou usar o plano, sempre foi para a Manu.

Ela fez a cirurgia para a retirada do tumor em janeiro. Foi uma intervenção complexa, porque ela também recebeu uma prótese de fêmur mais joelho, feita na Alemanha, ao custo de R$ 400 mil. A Unimed não aceitou o médico que nós escolhemos, queria impor outro nome. Pensei: preciso escolher quais batalhas lutar. Decidi fazer um acordo, em que a Unimed pagou a prótese e eu a cirurgia com o médico da Manu. Desembolsamos R$ 40 mil, boa parte das nossas economias.

A Manu ainda precisa de quimioterapia, para evitar o risco de metástase ou que haja uma recidiva do câncer. E agora que estávamos vendo a linha de chegada, a Unimed cancelou o plano.

Minha filha, que só tem 9 anos, vê minha mulher chorando, eu nervoso, os dois cansados de cobrar um pouco de atendimento digno. Ela vem chorando para a gente pedindo desculpas, achando que é culpa dela tudo o que estamos passando. Eu não tenho mais estrutura emocional para lidar com isso.

Erika Lima Sacheto com o filho Gabriel, de 5 anos, portador da Síndrome de West - Arquivo Pessoal

Gabriel, 5 anos, conforme relato da mãe, Érika Lima Sacheto

Gabriel é epiléptico desde que nasceu. Aos cinco meses, foi diagnosticado com a síndrome de West, que também causa espamos e regressão do desenvolvimento neuropsicomotor. É algo que pode causar 50 convulsões por dia. Só descobri a doença quando ele parou de sorrir.

Ainda hoje ele usa fraldas e não fica em pé sozinho. Está aprendendo a mastigar. Mas o avanço que conseguimos até agora se deve ao atendimento terapêutico, que foi suspenso pela Unimed.

Eu contratei o plano de saúde pela Qualicorp quando o Gabriel tinha 3 anos. Já disse logo de cara que ele era uma criança com epilepsia. Cumprimos a carência de 6 meses.

Depois de enfrentarmos o período de pandemia reclusos, conseguimos no último ano fazer o tratamento presencial na clínica. Ele demorou um pouco para se adaptar aos terapeutas, mas fez um progresso gigantesco, por ter ficado de pé e dado alguns passos. Por ter começado a mastigar.

Por isso, quando eu recebi o email da Qualicorp informando que não tinha mais credenciamento com a Unimed, meu mundo caiu. Eu pedi uma alternativa, mas disseram que não tinham oferta no momento.

Entrei na Justiça contra a rescisão e conseguimos a liminar no dia 28 de abril. Tanto a Qualicorp quanto a Unimed são rés no processo. Mas como a juíza não estipulou multa, ninguém cumpriu. Liguei para a Unimed e desligaram na minha cara. A Qualicorp pelo menos me atende, mas não resolve nada.

Toda essa situação agrava minha ansiedade, tenho tido crises de pânico. A vida de uma mãe atípica é cheia de exclusões. Mas uma empresa, que está sendo devidamente paga para prestar um serviço, não tem o direito de excluir as chances do meu filho de evoluir. A terapia vai definir o quanto de autonomia ele terá no futuro.

Conheço dezenas de mães que estão na mesma situação, desesperadas, com o plano de saúde cancelado.

Eu era coordenadora de vendas, mas pedi demissão para acompanhar o Gabriel no tratamento. Meu marido trabalha em tempo integral. Estávamos pagando R$ 1.500 pelo plano familiar, depois do último aumento, de 22%. Eu faço artesanato, passo as noites em claro para conseguir pagar o plano de saúde. Não mereço ser tratada como lixo.

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