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O que são 'demônios da ciência' e por que são úteis para o conhecimento

Eles continuam a motivar a busca pelo que não foi encontrado até agora

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Dalia Ventura
BBC News Brasil

Eles nasceram nas mentes de grandes pensadores e vivem na literatura científica e filosófica.

Eles ajudaram a tornar realidade o que antes era fantasia e continuam a motivar a busca pelo que não foi encontrado até agora.

Ilustração de um demônio
Pixabay

Alguns até se infiltraram na vida cotidiana e não mostram sinais de quererem sair dali.

Trata-se dos demônios da ciência, criaturas que ocupam o espaço das leis, teorias ou conceitos que ainda não conseguimos entender.

Eles são um tipo muito particular de experimento mental e "parte da linguagem científica", disse à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) a física mexicana-americana Jimena Canales, autora do livro "Endemoniados: una historia sombría de los demonios en la ciencia" ("Endemoniados: Uma história sombria de demônios na ciência", em tradução livre).

"Sou historiadora da ciência e adorei ver como os cientistas usaram essa palavra, porque é paradoxal, já que geralmente pensamos que cientistas são seculares e não supersticiosos."

No entanto, esses demônios são mais parecidos com o demônio ou daimón da Grécia Antiga do que com aquelas entidades malignas que nos vêm à mente quando ouvimos essa palavra.

Como explica a sacerdotisa Diotima ao jovem filósofo Sócrates em "O Banquete de Platão", eles habitam aquele lugar intermediário entre deuses e homens, e entre sabedoria e ignorância.

"Na ciência eles são úteis porque sabem contornar as leis da natureza e como conseguir coisas que não podemos fazer", diz Canales.

"Eles geralmente são semelhantes a nós, mas com características exageradas: são um pouco mais habilidosos ou maiores, ou menores ou mais rápidos ou mais sábios. Eles não são necessariamente perversos, mas podem desequilibrar o poder; podem ser úteis, embora às vezes também maliciosos."

"Por isso que são ideais para a ciência e a tecnologia, porque se trata de desenvolver, ir mais além."

E justamente esses demônios motivaram a autora a "ir mais além": eles mostraram que, ao contar a história da ciência, o mundo da imaginação nunca deve ser deixado de lado.

De acordo com Platão, Sócrates contou que tinha um daimonion ("algo divino") que o avisava quando ia cometer um erro, mas nunca lhe dizia o que fazer
De acordo com Platão, Sócrates contou que tinha um daimonion ("algo divino") que o avisava quando ia cometer um erro, mas nunca lhe dizia o que fazer - Getty Images

"Eu me dei conta que você pode contar a história do desenvolvimento da ciência e da tecnologia nos últimos 400 anos através da busca por essas criaturas, porque elas fazem algumas coisas que nos fascinam e outras que nos preocupam."

Mas do que diabos ela está falando?

O demônio da realidade virtual

O primeiro que Canales descreve é o demônio de Descartes e ela adverte: "Ele nem sempre foi chamado de demônio. No início era um gênio maligno", algo que acontece com várias dessas criaturas. São outros cientistas que lhes dão esse nome.

No século 17, o filósofo, matemático e cientista francês René Descartes lia Dom Quixote —a história do herói que não sabia distinguir a realidade da fantasia— e se perguntava: o que aconteceria se "algum gênio maligno com o mais extremo poder e astúcia usasse todas as suas forças para me enganar?"

Seu demônio tinha a capacidade de criar um mundo artificial completamente ilusório, mas totalmente convincente.

O filósofo, matemático e cientista francês René Descartes
O filósofo, matemático e cientista francês René Descartes - Getty Images

A ideia de que tudo o que ele achava que era real não fosse realidade era aterrorizante.

"Descartes começou a pensar quais seriam as poucas coisas que esse demônio não poderia tocar", diz Canales.

"Coisas como 2+3=5, ou que um círculo é uma circunferência desenhada em torno de um certo ponto, ou que um triângulo é composto de três retas em três ângulos."

"São coisas muito simples, mas que se tornaram a base da ciência moderna, da lógica, e foram inspiradas pelo medo daquele demônio."

Havia também outra fonte de certeza que o poderoso gênio não poderia corroer: por mais enganosa que fosse a alucinação, se era ele quem pensava, ele existia.

Eis então a famosa frase que apareceu em "Meditações sobre Filosofia Primeira", de 1641: "Cogito ergo sum".

"As tecnologias de realidade virtual ainda são desenvolvidas em referência ao demônio de Descartes", diz a historiadora da ciência.

"Queremos imitar a realidade, mas também temos medo de nos confundir. Por outro lado, as notícias falsas ("fake news") nos mostraram como outros podem nos enganar, por isso continuamos desenvolvendo métodos de pensamento crítico e racionalidade pura."

"Esse demônio me fascina porque ele aparece no início da ciência moderna e ainda está vivo."

O demônio mais famoso

O demônio de Maxwell parece menos assustador.

No entanto, observa Canales, "ele é mais perigoso que o de Descartes, pois pode agir diretamente sobre o mundo natural e não precisa enganar ninguém".

Science Photo Library

E, apesar de ser de um tamanho atômico, sua marca no mundo é enorme.

"A maioria dos dispositivos eletrônicos que nos cercam usa a ciência do demônio de Maxwell, e cientistas e laboratórios de todo o mundo continuam investigando e tentando construir versões melhores dele", diz Canales.

Idealizado pelo físico escocês James Clerk Maxwell, o demônio foi —e ainda é— muito importante para a Física.

"As leis estatísticas permitem exceções, então, para dar sentido à natureza estatística das leis da termodinâmica, um demônio foi invocado", explica Canales.

Maxwell inicialmente o descreveu como "um ser muito observador".

Mais tarde, quando o matemático William Thomson já lhe dera o nome pelo qual é conhecido, Maxwell escreveu que eram "seres muito pequenos, mas vivos, incapazes de trabalhar, mas capazes de abrir e fechar válvulas que se movem sem atrito ou inércia".

Science Photo Library

Ao fazer isso, o pequeno demônio separa as moléculas mais quentes e rápidas das mais frias e lentas... violando nada menos que a segunda lei da termodinâmica.

Para alguns, a ideia levantou a possibilidade de criar uma máquina de movimento perpétuo ou mesmo inverter a direção do tempo.

Na prática, a pesquisa de Maxwell levou a melhorias na eficiência de motores e refrigeradores.

Além disso, seu demônio provou que não importa quão baixas sejam as chances de algo acontecer, sempre há surpresas, pois os eventos mais raros acontecem de tempos em tempos.

O demônio do conhecimento infinito

Em 1773, o matemático francês Pierre-Simon Laplace, que trabalhou durante a Revolução Francesa, desenvolveu a ciência estatística, criou seu próprio demônio.

Ele imaginou uma entidade misteriosa "que sabia onde estão todos os átomos do Universo e quais são as leis do movimento", diz Canales.

"Esta inteligência poderia saber qual é o futuro e qual é o passado. Poderia saber tudo."

Pixabay

Para Laplace, o Universo era estável e previsível, portanto, se todos os dados necessários estivessem disponíveis, a análise matemática poderia nos ajudar a entendê-lo.

Essa fé no determinismo científico ajudou a inspirar a criação de máquinas que poderiam realizar os tipos de cálculos que ele atribuiu ao seu demônio.

Charles Babbage citou Laplace quando ele criou um dos primeiros computadores.

E, em 1842, a matemática britânica Ada Lovelace, que trabalhou com Babbage e conhecia o trabalho de Laplace, foi possivelmente a primeira a especular se os programas de computador poderiam ser considerados seres pensantes, debate que continua 180 anos depois.

Mas por que isso seria atribuído a um demônio?

"O termo 'demônio de Laplace' foi aplicado na década de 1920 porque, como os outros demônios, era uma ideia que obcecava os cientistas."

"E quando a mecânica quântica começou, o determinismo perfeito foi questionado. Os cientistas declararam: 'Isso não existe realmente, é um demônio.'"

"Ele é uma figura que estamos perseguindo e tentamos construir, construindo computadores cada vez mais poderosos, mas nunca vamos realizar esse sonho de saber tudo e ser capaz de prever o futuro perfeitamente determinado pelas condições iniciais."

Ainda assim, seguimos tentando.

O triunvirato no computador

"Seu computador, por exemplo, em certo sentido foi desenvolvido motivado pela busca desses três demônios", diz Canales, explicando:

  • O demônio de Laplace, em termos de ser uma máquina para acumular e processar dados
  • O demônio de Descartes, porque também é uma máquina de entretenimento e realidade virtual
  • E seus microprocessadores permitem que você faça o trabalho com mais eficiência, como o demônio de Maxwell.

Os de Darwin e Einstein

Antes de escrever "A Origem das Espécies", Charles Darwin imaginou "um ser infinitamente mais astuto que o homem" que poderia produzir uma nova raça de humanos, assim como somos capazes de criar ovelhas cuja lã tenha as qualidades que preferimos para nossos suéteres.

"Essa foi uma das questões fascinantes que impulsionaram sua pesquisa", diz Canales.

Pixabay

O ser estranho acabou desaparecendo e na versão final de sua obra o que aparece é a teoria da seleção natural, sem causas milagrosas ou forças sobrenaturais.

No entanto, ele ressuscitou na década de 1960, sob o nome de "demônio darwiniano", quando os biólogos quiseram explorar o que aconteceria se não houvesse restrições biológicas à evolução, estimulando pesquisas para entender melhor a teoria da evolução.

E Albert Einstein tinha algum demônio?

"Cientistas e um biógrafo muito importante de Einstein dizem que seu demônio era a mecânica quântica", responde a física.

"De acordo com a teoria da relatividade de Einstein, nada pode viajar mais rápido que a velocidade da luz. Mas desde que ele introduziu a ideia, outro demônio começou a assombrar os cientistas: qualquer coisa que possa viajar mais rápido que a velocidade da luz."

Isso mudaria completamente nossa maneira de entender o Universo.

"Esses demônios são importantes porque ainda estão vivos e tiveram uma vida tão longa porque nos motivam a realizar uma busca contínua."

"Na ciência é muito, muito, muito difícil verificar que algo não existe, porque no futuro esse algo pode aparecer."

E isso implica que qualquer teoria é frágil, como demonstra o famoso caso dos cisnes negros, que até o final do século 17 serviu de expressão para denotar algo impossível, pois se acreditava que eles não existiam, pois os cientistas europeus nunca haviam visto um."

"Conseguimos comprovar que, por exemplo, o Abominável Homem das Neves não existe. Mas existem esses pequenos espinhos que ainda não comprovamos sua inexistência e são tão fascinantes em suas habilidades —o demônio de Maxwell pode gerar lucro sem prejuízo— que continuamos procurando por eles, principalmente porque em certos casos eles são encontrados, e há muitas coisas que nos mostram que estamos prestes a fazê-lo."

"O que é fundamental sobre os demônios da ciência", escreve Canales no seu livro, "é como eles se tornam reais, ou seja, como nossa imaginação impulsiona a descoberta e como podemos usá-los para mudar o mundo."

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