Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu Todas WhatsApp

Vivas vozes

Até os áudios mais chatos são a saudade que eu gostaria de ter

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O alvoroço já começava na porta de casa, com a chave enfiada na fechadura. Só que no breu da sala de estar, bolsas e sacolas devidamente largadas pelo chão, era o coração que avistava —antes mesmo dos olhos— a aguardada luzinha vermelha piscando.

Aperta botão aqui, esfrega pilha acolá, nos sentíamos prontos. Que mensagem estaria gravada na fita da cassete da secretária eletrônica? Expectativa: qualquer coisa envolvendo meu crush adolescente da época. Realidade: dona Dinah, a síndica com voz de fumante, avisando sobre a reunião de condomínio.

Entre um suspiro analógico e uma lamúria digital, hoje sobrevivo a "trocentas" notificações, me perguntando onde foi parar aquela emoção. Sempre tão avassaladora em sua trivialidade, mesmo —e talvez sobretudo— quando era frustrada.

Na colagem digital de Marcelo Martinez, partes de um manual de instruções de uma secretária eletrônica sobrepostas a uma fita k7. A fita se desembrulha, formando um pequeno coração.
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune de 2 de setembro de 2024 - Marcelo Martinez/Folhapress

Feito isótopo radioativo, tinha para mim que todo recado pleno de boas intenções se degradava após uma sequência de sete áudios de WhatsApp. A maioria contendo um excruciante fluxo de pensamento que, em vez de esquentar seu ouvido por 15 minutos, poderia ter sido deitado em duas linhas.

Longe de mim ser problematizadora radical. Sou solidária aos que, por motivos distintos, não podem se comunicar por escrito, há que se praticar a inclusão. Há que se praticar a inclusão. Porém, nada justificaria um simples "okay" transformado numa emissão entremeada por buzinas, britadeiras, caminhões do gás e "desce daí, Pedrinho!".

Solilóquios existenciais de hora e meia, num podcast chato que reviraria Shakespeare na tumba: socorro. Padronizaríamos uma minutagem de corte, a partir da qual se formalizaria o "‘pelamordedeus’, me liga e vamos logo com isso".

Até que perdi alguém que jamais gravava áudios, maiores ou menores. O tipo de silêncio sepulcral que me deixou devastada, sem registros da sua prosódia. Seu jeitinho de falar. Angústia logo amplificada em saudade de áudios banais que nunca recebi, de vivas vozes tão amadas que morreram offline.

O que eu não daria hoje pelas esticadas de vogal do meu pai ao me chamar de "filhiiinhaaa". Mamãe comentando novela. Tio Wando esmiuçando gols do Vasco e tia Zuma rezando espinhela caída. Juro: queria até mais pigarros de dona Dinah.

"Às vezes, quando sinto muita falta", revelou um colega de trabalho, "fecho os olhos e escuto antigos episódios de série". "Meu pai dublava o Magnum." E assim, achei onde foi parar aquela emoção antiga. No breu de cada memória, uma luz pisca diferente.

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