Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu
humor

Mais do que um direito, ficar calado é por vezes a única atitude cabível

Sempre que o celular vibra, avalio se respondo ou se sentencio a conversa ao adeus definitivo, à morte por tracinho azul

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"Os olhos continuaram a dizer coisas infinitas, as palavras de boca é que nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como vinham...". Assim deitou a pena de Machado de Assis em "Dom Casmurro".

A meu ver, uma comprovação da seguinte máxima: quem escreve —seja a obra mais enigmática e monumental da nossa literatura ou o mais besta dos recados enviados por WhatsApp— precisa respeitar o poder daquilo que não é dito.

No cartum de Marcelo Martinez: cena clichê de filmes de guerra. O soldado, abatido em combate, em seus últimos suspiros, pede que o colega que o ampara dê um recado à sua família. Ele diz: "diga à minha família que... -mensagem apagada- Pera, vou de novo:".
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune de 22 de julho de 2024 - Marcelo Martinez/Folhapress

Mais do que um direito, ficar calado é por vezes a única atitude cabível. O mais cordial dos finos tratos. A sábia elegância do "melhor não" e do "shhh".

Sempre que o celular vibra e meu cenho se franze, antevendo o dilema, avalio a questão com o peso de sua problemática filosófica: respondo ou nem tchuns? Boto mais lenha no quiquiqui ou sentencio aquela conversa ao adeus definitivo? Causa mortis: dois tracinhos azuis.

Últimas palavras têm muita força, não à toa colecionamos aspas supostamente disparadas em leitos de morte. "Aplaudam, amigos, a comédia terminou" teria sido o arranjo final de Beethoven. "Será que ninguém entende?", o epílogo de James Joyce. "Deem-me café, quero escrever!", o deadline literal de Olavo Bilac. E "Ok, estou indo, espera um minuto", a extrema-unção procrastinadora do papa Alexandre 6º. À la Getúlio Vargas, todos saindo da vida para entrar na história com uma tirada matadora.

No entanto, verdade seja dita —e dita com todas as letras, não com um emoji de joinha, um melancólico "ok" ou kkks chancelando o que acabou de ser dito—, toda frase pode ser fatídica. Seja por motivo de morte, fim do amor ou decisivo ranço. A derradeira linha de uma emoção unilateral que fica sem resposta, iluminada na tela por uma esperança com apenas 1% de bateria.

Ninguém em sã consciência dos próprios atos ao teclado quer ser emissor ou receptor desse vácuo. Tudo seria ideal sem confronto. Da etapa do "dizer", pularíamos para o status de "já ter dito". O botão de "enviar" como se no painel de uma máquina do tempo, jogando para frente o vai-ou-racha em forma de zeros e uns. A posteriori, o sincerão digitalmente já indolor.

Em respeito ao que o outro merece saber, mas resguardando a gastura por aquilo que não mais desejamos verbalizar, existe saída possível. Passivo-agressiva para uns, compassiva a meu ver. Uma esticada nesse fio tênue entre a satisfação dada e a calada. O gato de Schröedinger —meio morto, meio vivo— das interações dúbias.

E que expressa: "mais não direi, porém sabes que estou dizendo algo, errr, meio vagamente, tá certo, mas cá entre nós está de bom tamanho". Afinal, para bom entendedor, meio pixel já basta.

"Mensagem apagada."

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