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O que acontece com a água no Uruguai?

Por que ampliar a oferta em vez de reduzir as perdas na rede de distribuição?

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Desde o fim de abril, mais da metade dos uruguaios vem enfrentando problemas de quantidade e qualidade da água. A população está sendo abastecida por água com concentrações oscilantes de salinidade, proveniente de uma mistura de água doce do reservatório de Paso Severino e água salobra do estuário do rio da Prata. A Administración Nacional de las Obras Sanitarias del Estado (OSE) tem gerenciado, junto ao Ministério de Saúde Pública, o aumento das concentrações de sódio e cloro na água distribuída como alternativa para evitar os cortes de água. Em meio à crise, o discurso oficial culpa os fatores climáticos e, ao mesmo tempo, espera que a solução venha com as chuvas.

Esse discurso também levou a um fortalecimento da defesa de projetos hidráulicos que permitam aumentar a oferta de água, como o Projeto Netuno. Enquanto isso, as medidas de gestão e controle de atividades que ocorrem no território da bacia do rio Santa Lucía, que abastece a área metropolitana de Montevidéu, não tiveram a mesma sorte.

O problema da água

Enquanto o discurso oficial mencionou que a água da OSE era "bebível", sem entender os padrões de potabilidade, as sociedades médicas recomendaram que alguns grupos sociais, como os afetados por hipertensão arterial, doença renal crônica, insuficiência cardíaca, cirrose ou mulheres grávidas, evitassem o consumo. Entre as consequências das medidas adotadas pelo governo estava a promoção do consumo de água engarrafada, o que ampliou as desigualdades sociais no acesso à água potável e segura, que é previsto constitucionalmente como um direito humano.

Inicialmente, a preocupação pela falta de chuvas era com o setor de produção agropecuária, um dos principais setores econômicos do país, o que levou à declaração de uma emergência agropecuária. Posteriormente, com a intensificação do problema, surgiu também a preocupação com a água para o consumo da população. Vários meses depois, foi declarada uma emergência hídrica, o que acelerou o investimento em obras.

O Instituto Uruguaio de Meteorologia (Inumet) disse que os últimos três anos foram extremamente secos e apontou uma relação entre esse período de seca e a fase La Niña do fenômeno da Oscilação do Pacífico Sul. Ademais, estudos mostram que essa seca foi intensificada por ações humanas que levaram a um aumento da temperatura.

Embora existam fatores climáticos em jogo, é surpreendente que o governo não tenha focado em outras dimensões, como as medidas de gestão da água e do solo. Tampouco ouviu propostas de atores da bacia e da área afetada. A oposição, por sua vez, criticou o fato de não concretizar os projetos hídricos propostos pelas gestões anteriores. Em vez disso, deu prioridade ao Projeto Neptuno, uma iniciativa que compreende o setor privado e a construção de uma planta que tornará potável a água do rio da Prata.

A academia e as organizações sociais vinculadas à temática consideram que existem problemas de longa data relacionados à falta de emprego e controle de medidas para reduzir a deterioração ambiental da bacia. Isso está associado a diferentes conflitos, entre os distintos usos da água e do solo na bacia. Soma-se a isso a pouca permeabilidade à participação social na tomada de decisões sobre planejamento, gestão e controle da água.

Outro aspecto que gera preocupação é a perda de água potável nas redes de distribuição por falta de manutenção. A International Benchmarking Network for Water and Sanitation Utilities (2015) mostra que o Uruguai tem uma perda de quase 50% de água potável produzida nas plantas potabilizadoras. Isso levanta a questão: por que o governo está optando pela ampliação da oferta de água, em vez de tomar medidas para reduzir as perdas na própria rede de distribuição?

Das decisões centralizadas à água engarrafada

Os âmbitos de participação, que foram estabelecidas com a reforma constitucional de 2004 e integradas por diferentes setores, foram convocadas tardiamente para abordar a crise. A Comissão da Bacia e o Conselho Regional de Recursos Hídricos só se reuniram em junho, quando a crise já estava avançada e quando havia protestos sociais quase diários.

Entretanto, não é a primeira vez que esses âmbitos são ignorados e sua função é seriamente afetada. Em outros países do Cone Sul, também foi observado que, em momentos de crise, os processos de tomada de decisão tendem a ser mais centralizados, menos transparentes e participativos, e explicitam a desigualdade de poder entre os diferentes atores envolvidos.

No caso do Uruguai, há um setor que saiu ainda mais forte: o mercado de água engarrafada. As vendas de água triplicaram após a redução intencional da qualidade da água distribuída à população. Em consonância com o argumentado por outros pesquisadores, além de discutir o subsídio da água engarrafada para a população de baixa renda, deve-se questionar esta forma de passar a responsabilidade de abastecimento público de água potável ao setor privado.

Em conclusão, vale apontar que não falta água no Uruguai e que a chuva, por si só, não trará a solução para essa crise. Essas afirmações podem causar surpresa, mas essa crise vai além da falta de água nos reservatórios ou da salinidade da água que sai da torneira. Nos mostra, por um lado, a insistência nas mesmas respostas governamentais com relação à ampliação da oferta de água através de projetos hídricos. E, por outro lado, evidencia os problemas com a participação social e a ampliação da discussão de uma crise que afeta aproximadamente 2 milhões de pessoas.

Represa de Paso Severino, que abastece 60% da população do Uruguai, quase sem água - Martín Silva - 29.jun.23/AFP

Não falta água no Uruguai, pois mesmo diante da crise de abastecimento na região metropolitana, não faltou oferta de água (engarrafada). Ou seja, não há dúvidas de que há um déficit qualitativo e quantitativo de água doce que afetou parte da região centro-sul do país de forma desigual. Mas a crise resulta das medidas adotadas (ou não), o que gera consequências.

O governo optou por diminuir a qualidade da água pública distribuída, sabendo que, com tal medida poderia haver uma redução da confiança da população na empresa pública e um maior consumo de água engarrafada (que pode se manter). Ou seja, optou-se pelo clima (por causa das chuvas) e pelos mecanismos de mercado. O primeiro não pode ser culpado pelas decisões políticas; o segundo não busca prestar um serviço equitativo à população e nem gerenciar um bem comum.

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