Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Cristianismo não sabe responder por que Deus deixa o mal acontecer

Demo pinta e borda com tranquilidade, enquanto teólogos falam em livre arbítrio, num discurso que não se sustenta

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Por que o mal existe? Essa pergunta abre espaço para muitas respostas, muitas delas contraditórias. Podemos, de cara, dizer que é uma daquelas perguntas que revelam o mal-estar da metafísica, como dizia Fernando Pessoa, porque, a rigor, não existe o "mal", mas apenas fenômenos que agradam a uns e desagradam a outros, ou mesmo que desagradam a todos. Esses, como vulcões, epidemias, maremotos e terremotos, são males naturais, logo não são mal nenhum.

A natureza nem o universo são morais. Ambos não visam causar mal a ninguém. Daí dizermos que a natureza e o universo são cegos moralmente. Em filosofia dizemos: a natureza nem o universo tem qualquer intenção de causar mal a ninguém.

A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual mista com pastel oleoso e nanquim sobre o papel, em acabamento com contornos manchados.  A imagem, na horizontal, apresenta 4 perfis estilizados de figuras, do ombro para cima, colocados lado a lado - em cor preta sobre fundo laranja manchado com tons quentes de vermelho.  O personagem, à esquerda, tem chifres e orelhas pontudos, lembrando a figura de um diabo e, à direita, a figura de um anjo com o arco sobre a cabeça. As figuras intermediárias são transições em forma, da esquerda para a direita, das duas figuras.
Ilustração para coluna de Luiz Felipe Pondé - Ricardo Cammarota

Outra forma de responder a esta questão é dizer que não existe mal nenhum a não ser "shit happens", ou coisas ruins acontecem, porque as coisas do mundo estão submetidas à contingência —sorte ou azar.

Muitas vezes ações humanas não intencionais causam mal aos outros, como erros técnicos, de gestão, ignorância, irresponsabilidade, enfim, a cadeia de causas possíveis para eventos indesejáveis —eventos maus— é infinita, e não temos tempo para o infinito aqui.

Entretanto, pouco importa como respondamos negativamente à existência do mal, continuamos a sofrê-lo
de maneira irrevogável.

Alguns separam o mal natural —que não é mal em si— do mal moral —causado pelos homens. Este seria, para muitos, o espaço possível de nossa ação contra o mal. O outro, o natural, enfrentamos com a boa técnica, a boa ciência, a boa gestão e a boa política —a mais rara das quatro.

Passamos a vida a enfrentar males diversos, dos morais aos naturais, e acabamos por perder a batalha para o mal natural mais temível de todos, que é a morte.

O problema seria, portanto, postular a existência de um "mal em si", entidade metafísica ou intencional, que visaria causar sofrimento, destruição, injustiças e similares ao homem e a todas as criaturas que povoam o universo.

A pura e simples indiferença do universo e da natureza para com o nosso sofrimento já é vivida como um
mal para nós. como dizia o escritor Albert Camus.

As religiões em geral fazem do mal um princípio metafísico. Demônios, espíritos sem luz, "más energias".
O espiritismo, a mais tosca das religiões, entende o mal como algo a ser resolvido a prestação, como boletos pagos em cada encarnação.

O cristianismo tem um problema mais grave do que as demais religiões para responder à questão "por que o mal existe?".

Você sabe por quê? Porque o cristianismo inventou que Deus é amor, que Deus é bom e todo poderoso, e aí ferrou tudo. Foi obrigado a criar um princípio outro —Satanás—, meio incontrolável, que fica detonando tudo por aí.

O problema persiste porque daí a questão muda para "por que Deus, que é amor, bom e todo poderoso, deixa o demo pintar e bordar?" Ninguém sabe responder a esta pergunta de forma satisfatória.

Muitos teólogos cristãos e pessoas comuns dizem que a causa do mal é o livre arbítrio. Deus nos criou livres e escolhemos mal. Infelizmente —mesmo com toda a simpatia que nutro por grande parte da teologia, que é uma forma de filosofia religiosa bastante sofisticada em muitos casos—, devo dizer que essa resposta não fica de pé.

Como diz o jovem filósofo niilista Ivan Karamazov, personagem dos "Irmãos Karamazov" de Dostoievski, não há resposta que perdoe a Deus pelo sofrimento de uma criança inocente.

Se ele existe, ele é cruel ou um fraco. Espíritas, com sua lógica positivista de bolso, dirão que a criança escolheu sofrer antes de encarnar para pagar algum boleto moral de encarnações passadas.

Enfim, o argumento a partir do mal, como se diz em filosofia, é um xeque-mate no cristianismo. Deixa-o de joelhos. Ateus praticantes gozam com este argumento.

Inteligentinhos respondem que o mal é relativo. Não fosse eles a nos dizer, nunca imaginaríamos tal sofisticado diagnóstico. Muito obrigado!

Quando abrimos a porta do relativismo para uma reflexão como esta sobre o mal, convidamos o niilismo para jantar. E deste, todos tem medo. Até mesmo os ateus Toddynhos e os relativistas.

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