Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Oitocentos quilômetros a pé na neve. A furiosa caminhada de Werner Herzog

Dormindo em estábulos, molhado e esfomeado, cineasta protagonizou pungente gesto de amizade

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Uma das caminhadas mais espetaculares da literatura está contada no livro "Caminhando no Gelo", de Werner Herzog (Paz e Terra; 104 pág.). O livrinho, que vai fazer 50 anos em 2024, é um relato seco da saga do obsessivo diretor de cinema alemão.

Herzog é conhecido por seus arroubos, principalmente na produção de "Fitzcarraldo" e "Aguirre, a Cólera dos Deuses". Nesses dois filmes, ele enfrenta a revolta de milhares de figurantes exaustos de empurrar um navio através de montanhas enlameadas da Amazônia e ainda briga com o ator que ele ama odiar, Klaus Kinski, seu melhor amigo.

Klaus Kinski em cena de "Aguirre - a Cólera dos Deuses" - Divulgação

Pois bem, em 1974, aos 32 anos, depois de lançar "O Enigma de Kasper Hauser", Herzog já era apontado como um dos melhores diretores da nova geração alemã, quando fica sabendo da grave doença de uma amiga –Lotte Eisner, que morava em Paris.

O cineasta alemão Werner Herzog - Renato Parada/Divulgação

Inconformado, ele nega a Lotte o direito de morrer. Por algum inexplicável mecanismo mental, Herzog decide ir a pé até Paris, como um sacrifício, uma peregrinação, um ato desesperado. Enquanto estivesse caminhando, ela não morreria. O trecho é lindo e amedrontador: "Ela não pode morrer, não vai morrer, não permitirei. Não vai morrer, não vai. Não agora, não tem o direito. Por Deus! Ela não pode. Não vai morrer. Quando eu chegar a Paris ela estará viva."

Movido pela fúria, medo, esperança e talvez loucura, ele sai de Munique e anda. Anda furiosamente. No caminho de Santiago é comum as pessoas andarem 25 ou 30 km por dia, na trilha bem sinalizada. Herzog anda quase 40 por dia, cheio de dores nas articulações, enfrentando um inverno glacial, chuvoso e triste, através de campos nevados ou acostamentos ameaçadores. "Arrasto-me mais do que ando. Minhas pernas doem tanto que mal posso colocar uma na frente de outra. Quanto mede um milhão de passos?"

Seu autoflagelo não termina aí. Ele decide passar as noites em qualquer lugar que consiga invadir. Então quebra trincos, vidros e tramelas e se mete em celeiros com feno úmido, guaritas de guardas ferroviários e até casas de veraneio vazias, onde medita sobre as vidas dos proprietários a partir de fotos. Quando tem sede –e tem sede o tempo inteiro–, bebe leite, quando tem fome, come qualquer coisa, de salsichas a frutas que vai comprando pelo caminho. Um dia, sozinho numa nevasca, balança uma macieira e come maçãs até se saciar.

homem olha barco subir montanha
Klaus Kinski em cena antológica de "Fitzcarraldo" (1982) - Divulgação

A solidão pesa. Depois de poucos dias, ele já duvida da própria humanidade ao cruzar com pessoas que evitam o homem malcheiroso e ensopado. "Ninguém no mundo pode imaginar tamanho abandono do homem. É o dia mais deserto, mais solitário de todos. Então fui chacoalhar a árvore até esvaziá-la de vez. Ao terminar despencou um monstruoso silêncio sobre mim, olhei ao redor e não havia ninguém. Estava sozinho."

A jornada tem o eco dos grandes aventureiros, como Ernest Shackleton, o navegante inglês que perdeu o navio na Antártida, mas principalmente das grandes peregrinações, dos caminhantes que vão em busca de uma bênção ou em agradecimento por uma graça alcançada,

Em Santiago de Compostela, Roma, Jerusalém ou Juazeiro do Norte, o cansaço purifica, a vaidade desaparece diante da dor, da distância e do cansaço. Na Idade Média, os peregrinos faziam o testamento antes de viajar, tal era o risco de não voltarem, vítimas de ladrões ou acidentes. Tudo é difícil, tudo é conquistado, passo a passo.

O livro é menos uma inspiração para o caminhar e mais um mergulho na alma atormentada do homem que se impôs o objetivo mágico de salvar uma vida através do seu próprio sofrimento.

A caminhada chega ao fim em Paris. E o que acontece?

Já ouvi críticos literários dizerem que não há spoiler em contar o fim de livros clássicos, mas eu prefiro não dizer se Lotte estava viva ou não quando ele chegou.

Quem ler o livro vai descobrir, mas a prosa dura e árida de Herzog não é capaz de esconder que se trata de uma das maiores caminhadas e um dos maiores gestos de amor que já se viu.

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