Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta

As galinhas de Hitchcock

Crédito: Reprodução

Fui procurar um proto artigo sobre o Bocuse, a primeira vez que falaram nele, e não achei. Fiquei triste quando vi aquela cena da missa de corpo presente, os chefs de toque todos reunidos, e senti como é vertiginosa a vida. Mas na procura achei outra velharia, uma crônica que devo ter escrito para uma revista de comida que já morreu há anos. É para os que gostam de cinema e de galinhas. Resumi a história.

"Gostaria de fazer uma antologia sobre comida, mostrando-a ao chegar à cidade, sua distribuição, sua venda, as pessoas fazendo a compra, cozinhando e os vários modos pelos quais o alimento é consumido...", Hitchcock.

Vamos a ele. O filme "Frenesi" dá voltas no mercado de Covent Garden, em meio a maçãs, uvas, o vaivém dos carrinhos de verduras e frutas. O corpo em rigor mortis custa a se acomodar num saco de batatas. O policial que investiga o caso janta em casa todos os dias, a mulher comenta o crime à mesa e cozinha pratos exóticos.

Os jantares em casa são franceses, seguindo à risca o curso de culinária da mulher, e aos olhos dele são o que há de mais perverso, tão depravados quanto o crime e o assassino, codornas magriças acompanhadas por duas uvas anunciando a "nouvelle cuisine", e mostrando o desentendimento entre a cozinha francesa clássica e aquela que se aproximava pelas mãos de Bocuse.

Em "Suspeita" ("Suspicion"), Joan Fontaine imagina que o marido Cary Grant é um assassino. À mesa, ele questiona insistentemente um médico amigo sobre um veneno que não deixe marcas. O doutor responde enquanto come e comenta a biópsia de um envenenado, a faca rasgando o peito branco de uma galinha. Galinhas, sempre galinhas nos filmes de Hitchcock. Quem as compra, quem as cozinha?

Em "Interlúdio" ("Notorious"), Cary Grant e Ingrid Bergman vão ao Rio de Janeiro como agentes americanos. Num terraço art decô, à beira mar, acontece o beijo mais longo do cinema, conversam sobre um jantar de frango e até dividem as tarefas de lavagem da louça. À noite, La Bergman serve desajeitadamente uma galinha esturricada que ela mesmo admite que não pegou fogo por sorte. No Rio de Janeiro de 1946, as galinhas eram vendidas diretamente do galinheiro, podem imaginar Ingrid Bergman a estrangular e depenar o bicho nos tristes trópicos de 40 graus a sombra?

Em "Trama Macabra" ("Family Plot"), o padre sequestrado, preso, pede um minuto a mais antes de ser sedado."Ainda não acabei de comer minha galinha!"

Joan Fontaine e Laurence Olivier, em Rebeca, num momento muito tenso. No banco do carro uma cesta de piquenique, de palha, com pratos, talheres e bebida. George Sanders, todo mundo se lembra dele, o primo cínico amante de Rebeca, interrompe o tête à tête tirando do cesto uma coxa de galinha. Dá duas mordidas e joga-a pela janela. Não sem antes se perguntar o que é que se faz com os ossos, num caso desses.

Galinha com certeza feita na enorme cozinha de Manderley, as sombras "hitchcokianas" da governanta, com o garfo agigantado na parede lisa. Joan Fontaine, correndo como um esquilo assustado, esperando como certo o cutucão do garfo no seu coração tímido de moça bobinha, de conjunto de cashmere e fio de pérola no pescoço. E as panelas da cozinha de Manderley aberta à visitação pública. E o diretor filmaria a cena de dentro da panela para fora, em meio ao óleo ondulante sob a perspectiva da galinha.

Em "Ladrão de Casaca", Cary Grant, noutro piquenique a dois com Grace Kelly, também mordisca uma coxa generosa e devolve-a à cesta. Impossível imaginar Grace Kelly, no hotel Carlton, em Cannes, assando galinha. É claro que encomendou tudo no restaurante, e por isso, o galã, gato dos telhados, desdenhou sua porção. Grace Kelly de anágua de renda e saia plissada rodada perderia todas as chances futuras de reinar sobre o principado se filmada nessa tarefa tão chã.

E por último, em "Os Pássaros", um grupo discute no pequeno restaurante da cidade a tragédia das aves assassinas. E repente entram fregueses. Uma mulher e duas crianças. A voz estridente da garçonete se faz ouvir: "Solta três galinhas fritas com batatas! "Of all things, of all places!"

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