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sylvia colombo

crônicas de Buenos Aires  

08/03/2011 - 07h03

Crônica do terremoto

Às 3h34 da madrugada do dia 27 de fevereiro de 2010, o Chile sofreu um terremoto de magnitude 8,8 na escala Richter. Em seu epicentro, no sul, durou sete minutos e foi seguido de um tsunami. Nas regiões mais afetadas do país, as recordações ainda são dolorosas. Ao todo, morreram 525 pessoas, segundo estimativas oficiais.

Fugindo do Carnaval brasileiro, passei alguns dias em Santiago, a capital do país. Pouco mais de um ano após a tragédia, os santiagueños já parecem ter superado o episódio. É claro que a cidade foi pouco afetada perto de outras áreas --alguns prédios velhos foram ao chão, pontes racharam e a torre de uma igreja antiga caiu--, mas eu esperava ouvir relatos mais tenebrosos desses minutos que devem ter parecido horas.

Meu anfitrião na cidade conta que se lembra exatamente do modo abrupto como acordou e viu as paredes de seu apartamento balançando. Diz que sentiu medo, mas não mais do que em outras ocasiões. Um amigo seu diz não ter dado bola e voltado a dormir, enquanto uma outra conta que ficou curiosa e desceu para a rua, onde havia muita gente apavorada tentando fazer ligações telefônicas ou buscando lugares iluminados.

Pelo papo com eles, não me pareceu que o terremoto tivesse sido assim tão incrível, até que topei, numa livraria, com um novo volume do mexicano Juan Villoro, "8,8: El Miedo en el Espejo" (o medo no espelho). Comprei na hora. Não só porque estava em busca de vestígios mais emotivos do tremor, mas por admirar o autor já de longa data.

Villoro, 54, possui uma habilidade incrível para a crônica. No mercado espanhol e hispano-americano, tem excelente trânsito, e já ganhou muitos prêmios. Como o Herralde pelo romance "El Testigo" ou o Vázquez Montalbán pela coletânea de crônicas "Dios es Redondo". Conheci-o por meio dos textos que escreve regularmente para a revista peruana "Etiqueta Negra". Sabia que narrava muito bem cenas cotidianas, hábitos sociais, viagens e, agora, terremotos.

O livro tem pouco mais de 80 páginas, é uma espécie de crônica mais longa, um gênero que agora prolifera no continente, e saiu pelas Ediciones Universidad Diego Portales.

Villoro estava em Santiago no dia do terremoto, participando de um encontro de literatura infantil. Como mexicano, diz ter chegado como um ex-combatente da Guerra do Vietnã. Afinal, em seu país acontecem muitos tremores ("os mexicanos têm um sismógrafo na alma") e ele vivenciara talvez o mais terrível, o de 1985, de 8,1 na escala Richter, que causou grande destruição na Cidade do México e deixou um saldo de quase 10 mil mortes.

O mexicano conta que, em Santiago, os poucos minutos de abalo pareceram uma eternidade. E quando caiu pó do teto em sua boca, sentiu um gosto acre. "Era o sabor da morte". "O tremor arremessou ao ar garrafas, livros e a televisão. Ouvi uma pequena explosão por perto. Escutei o som das rachaduras se abrindo nas paredes."

Quando a terra parou de vibrar, pôs-se de pé, "com a vacilação de um marinheiro em terra. Não era normal estar vivo. A alma tardava em regressar ao corpo".

Desceu do quarto do hotel imaginando encontrar tudo destruído nas ruas. E impressionou-se com a cidade praticamente intacta, apesar da escuridão e da confusão de informações.

"Nós, mexicanos, então vimos a arquitetura chilena como uma espécie de milagre", e põe-se a elocubrar sobre as razões de o D.F. ter desmoronado e Santiago estar inteira. Não só o padrão das construções parecia ser, efetivamente, melhor, como era preciso lembrar que a Cidade do México fora construída sobre o que antes era um lago.

Mas o melhor do livrinho é a sequência de conclusões que Villoro tira das reações humanas e as imagens que encontra para descrever o que viu. "Os terremotos representam um striptease moral. O pior e o melhor de cada um é revelado", enquanto via a mesquinhez de certos grupos que disputavam quem iria conseguir embarcar nos poucos voos disponíveis para sair dali. Ou, ainda, "a superstição era a ciência do momento", ao narrar o delírio de um jovem que queria subir de volta ao quarto atrás de suas "calças da sorte".

Enquanto narra de modo envolvente as impressões e os detalhes do que viu, Villoro começa a lembrar com mais clareza do terremoto de 1985. Enumera sentimentos, afetos, passagens e personagens dos quais havia se esquecido. E se espanta com o modo como bloqueara aquelas lembranças.

"O terremoto no Chile ativou outro, o que destruiu minha cidade, e que tenho evocado na minha escritura de vários modos ao longo de todos esses anos, mas todos eles indiretos, talvez por pudor ante um sofrimento demasiado próximo, talvez por superstição de não atiçar a desgraça (essa aniquilação marcou um limite, uma fronteira definitiva, algo que não deveria atravessar, a linha amarela de um local do crime, a zona à qual as palavras não chegam)".

Ao escrever agora esse pequeno relato, entre o irônico e o dramático, Villoro rompeu esse limite. E talvez tenha cumprido com o papel real da boa crônica: o de aproximar-se o máximo possível daquilo que é tão difícil, às vezes impossível, de ser dito.

sylvia colombo

Sylvia Colombo é correspondente da Folha em Buenos Aires. Está no jornal desde 1993 e já foi repórter, editora do "Folhateen" e da "Ilustrada" e correspondente em Londres. É formada em jornalismo e história. Escreve às terças-feira no site da Folha.

 

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