Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu Todas

Vote 'sim' na campanha por uma cronista sem medicação

Parei com a venlafaxina no sábado e na terça já estava com uma raiva descomunal

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Parei com a venlafaxina no último sábado e na terça-feira, antes das nove da manhã, eu já estava com uma raiva descomunal. Liguei para a minha amiga Carla para que ela me ajudasse. "Podemos falar mal do Roberto?".

Roberto foi um cara com quem trabalhamos há mais de 15 anos. Era um grande bosta fedorento que costumava mostrar os dentes amarelados somente para objetos humanos que ele considerasse usáveis para seus planos megalomaníacos de sucesso empresarial.

Roberto vinha de uma agência em que pessoas consideradas feias e malvestidas precisavam trabalhar no subsolo para não serem vistas. Meu Deus, o que foi a publicidade paulistana no começo dos anos 2000!? Então, para jamais ser relegado ao inferno da inexistência (e esconder sua tendência a ter imensas tetas), Roberto virou fake maratonista. Andava com uma garrafinha de água e a chupava com carinha de "vemnimim". Eu tinha horror do Roberto.

Era tão playboy que chamava as pessoas, de qualquer gênero, de "meeeeein". Antes de ser modinha, Roberto, que passava o dia dando umas dedadas no ar e fazendo beiço (porque escutava música eletrônica em um fone de ouvido) já era um baita white savior, esse tipo que adora informar como é amigo dos taxistas e garçons e porteiros. Uma vez ele chegou contando "hoje minha academia foi empurrar o carrinho de um catador de papel, ficamos amigos". A-MI-GOS.

Sabe Deus o motivo, eu acordei e lembrei do cabelo dele, uma coisa sebosa compridinha, acho que a gente chamava de mullet. Recordei enojada que ele estava sempre sorvendo copinhos de café com um olhar estrábico-tarado. Abusador moral e sexual (também antes da explosão midiática dos termos), era além de tudo feio e o tipo que dizia "mulher sem unhas feitas, com cor clarinha, eu nem perco meu tempo". Já falei que fedia?

Close de um homem aplicando desodorante, parado no banheiro
Innervisionpro/Adobe Stock

Eu odiava o Roberto numa época em que não éramos todos medicados e numa época em que era possível não suportar as pessoas e escrever sobre isso sem aturar desocupados te perturbando em redes sociais. "Ai, que desserviço hein 'cronista'? Falar em raiva quando tudo de que mais precisamos é de amor, de compreensão?". Pois é, minha cara fada, neste espaço é isso mesmo que cometeremos. Desserviços.

Eu odiava o Roberto e liguei cedo pra Carla e falamos mal dele por mais de uma hora. E engatamos em Vinícius, Fernandas, Antonelas e Geraldos. Acho que até de uma criança falamos mal. E eu falei mal do cachorro de Carla. E falamos mal de mim. E foi como acordar e meditar, fazer yoga.

Uma véspera de feriado, olhei profundamente para Roberto e lancei: "Você é uma imensa merda ambulante, putrefata, mórbida, parasitária, sabia?". Não fez sentido do ponto de vista de interpretação cartesiana de texto, mas foi como se eu esfregasse minha alma em Confort. Eu nunca me esquecerei desse prazer.

Minha nova psiquiatra explica que tenho ciclotimia, que consiste em quadros esporádicos com minidepressões e manias brandas. Ela diz que preciso de estabilizador de humor e que a nova medicação vai me ajudar, inclusive, a sentir menos dores no corpo. Então faço o completo oposto do que ela me pede: paro com a venlafaxina e nem começo com a lamotrigina. Eu quero emagrecer e desinchar.

Parabéns (sem ironia) para todo mundo que rebola bundas imensas e adiposas em redes sociais porque precisa ser livre. Mas eu quero ser livre dos seis quilos que não me pertencem. "Mas que desserviço hein, cronista?" Ah, filha, pega no meu ovo.

Desde terça estou um bicho selvagem raivoso ruim e lembrei de Roberto. Roberto além de tudo fedia.

Para mais textos sobre os tantos Robertos desta cidade, vote 'sim' na campanha por uma cronista sem medicação.

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