Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente férias

'White Lotus' e as férias das quais não voltamos

É bom lembrar que elas têm potencial de se transformar em 'road movies'

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Salvo para os que insistem em tornar as férias tão rotineiras e previsíveis quanto todo o resto do ano, vale lembrar que elas têm potencial de se tornar "road movies".

Tomo pela expressão aqueles filmes no qual a jornada interna dos personagens —seus desafios, dilemas e conquistas— se dão durante um deslocamento espacial, uma mudança de cenário, a partir da qual os personagens saem diferentes do que entraram. Mas para que saiam transformados, algo novo, disruptivo e necessariamente custoso deve advir, como bem sabem escritores e roteiristas.

A série "White Lotus", merecidamente premiada com o Globo de Ouro, é um exemplo, pois aqui também as férias servem de mote para que ninguém saia como chegou. De fato, como vemos já na primeira cena, sequer todos escapam vivos. Mas o elemento perturbador da segunda temporada está menos nas mortes anunciadas, cujas vítimas obviamente só serão reveladas ao final, do que na entrada de duas jovens prostitutas penetras no hotel de altíssimo padrão.

Ali onde o dinheiro parece resolver e controlar tudo, Eros insiste em bagunçar o coreto. E onde há Eros, há Tânatos.

Sorrateiras, irresistíveis, meigas e —por que não?— sacanas, só as putas salvarão a estadia geral da absoluta mediocridade prevista por milionários comendo, bebendo e comprando demais, besuntados de bronzeador sob o paradisíaco sol da Itália.

Os excessos permitidos em situações excepcionais e que parecem grandes atos de liberdade —o uso livre de drogas, experiências sexuais diferentes— ainda estão no campo da exceção que confirma a regra. Algo como "o que se faz em Las Vegas fica em Las Vegas", indicando que, para além do segredo, o sujeito tem poucas chances de testemunhar alguma transformação em sua vida fora dali.

O que transforma o sujeito não é a licenciosidade eventual e quase programática que os intervalos do trabalho podem propiciar. O porre na happy hour, a semana de Carnaval, as férias "loucas" exibidas nas redes ad nauseum costumam se prestar a que voltemos mais produtivos e mais conformados com nossa rotina de concessões.

O caráter disruptivo e transformador de uma experiência vem da combinação entre seu potencial de nos confrontar com nosso desejo e nossa coragem de bancá-lo. Como quando a personagem Alice descreve para um atônito marido seu desejo arrebatador por um desconhecido, em "De Olhos Bem Fechados" (1999) de Stanley Kubrick.

Tom Cruise e Nicole Kidman em "De Olhos Bem Fechados", de Stanley Kubrick - Warner Bros./Reuters

O encontro, que a fez quase abandonar tudo para seguir outro homem, não passou de uma furtiva troca de olhares no lobby de um hotel, mas seu efeito gerou um desfiladeiros de situações nas quais o desejo de ambos é colocado em questão. Se eles vão bancar no final ou não, sugiro ver ou rever o filme.

Também vale lembrar a sensibilidade com que Spielberg retrata o caráter disruptivo do seu encontro com o desejo, na volta do acampamento da família em "Os Fabelmans" (2022). Momento no qual o cineasta ainda adolescente vivencia o traumático da sexualidade humana pela revelação do desejo dos adultos.

E não podemos deixar de citar o primoroso "Aftersun" (2022), de Charlotte Wells, no qual a filha busca resgatar as pegadas do desejo do pai a partir das lembranças e imagens do convívio em suas últimas férias juntos.

Mas é importante ressaltar que não precisamos de tramas rocambolescas e acontecimentos trágicos para que o encontro com o sexual tenha um que de traumático pelo simples fato de que ele é produto do reconhecimento de que há algo em nós que nunca controlamos inteiramente.

Se a rotina tem a função de manter tudo sob controle e previsível, sua interrupção pode nos dar a chance de assunção do desejo. Dessas férias, nunca voltamos os mesmos. Às vezes, sequer voltamos.

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